A terceira margem do rio

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1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo fazer uma breve análise semântica do conto “A terceira margem do no”, do aclamado escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), presente em seu Ilvro primeiras estórias (1962). Trata-se de um texto que permite várias interpretações e análises, motiva diversas discussões e reflexões, além de ser fonte para intertextualidades em outras linguagens artísticas: em 1991 Caetano Veloso e Milton Nascimento lançaram um poema-canção de mesmo título, presente no CD Circuladô.

Já no cinema, o cineasta Nélson Pereira os Santos dirigiu o longa A Terceira margem do rio (1994), onde seis contos transfor do conto A menina d que dá titulo ao filme A primeira seção de terceira margem do PACE 1 to view nut*ge com predominância conto homônimo tegra o conto “A os a vida e a obra de Guimarães Rosa. Os dois cap tulos seguintes falam da linguagem originalíssima desenvolvida pelo autor, e como ele está inserido no contexto da prosa pós-moderna (ou 3a geração modernista). Em seguida é definido o conceito de conto.

O capítulo seguinte trata dos elementos narrativos que compõem “A terceira margem do rio”: narrador, personagens, espaço e empo. A próxima seção analisa os aspectos marcantes e oferece possíveis interpretações do enredo, em todos os seus quinze parágrafos. O último captulo faz um paralelo entre as ideias do psicanalista Jacques Lacan e esta obra-prima de Guimarães Rosa Swipe to vlew next page Rosa. 2 A TERCEIRA MARGEM DO RIO Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação.

Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regla, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia.

Seria que ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescaria e caçadas? Nosso pai nada não dina. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em ue a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuida encalcou o chapéu e 39 você nunca volte! ” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito.

O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — “Pa o senhor me leva junto, nessa sua canoa? Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a benção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.

A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, izinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho. Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua famllia dele.

As vozes das noticias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar erra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Ent PAGF 39 ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na rimeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal.

Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu ncargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava. Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima.

De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que n 9 os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem eixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele. A gente teve de se acostumar com aquilo. ?s penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do- ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as sem fazer conta do se-ir do viver. semanas, e meses, e os anos — Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim.

Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um ósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na ‘apinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? Ea constante PAGF s 9 ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia?

E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus- de-érvore descendo — de espanto do esbarro. E nunca falou ais palavras, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma contida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça pra ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum onhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim… ” , o que não era o certo, exato, mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber d se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não- encontrável? Só ele soubesse.

Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. Agente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados. Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.

Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mm, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão do seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-quedisseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que ara ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrldo ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais.

Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entr PAGF 7 39 fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos. Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio- rio, o rio — pondo perpétuo.

Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo em tororoma e no tombo da cachoelra, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro.

Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia. Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e eclarado tive que reforçar a voz: — “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto…

Agora, o senhor, vem, não carece mais.. O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades PAGF 8 9 senhor, vem, não carece mais… O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor na canoa!.. ” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto o rimeiro, depois de tamanhos anos decorridos! eu não podia. Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não para, de longas eiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

ROSA, João Guimarães. “A terceira margem do rio”. In: Primeiras estórias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 79-85. estudos na pequena cidade natal, onde seu pai era pequeno comerciante. “Cresceu ouvindo vaqueiros que passavam pelo armazém do pai contarem “causos”. Aos dez anos, mudou-se para Belo Horizonte, onde faria seus estudos. ” (Abaurre; pontara, 2005, p. 616). Mostra-se um aluno aplicado, principalmente em História Natural e Línguas. Gostava de colecionar insetos e fazer expedições nas matas de Cordisburgo durante as férias.

Era míope, introvertido e calado, mas observador atento. Em 1925, matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais (atualmente Faculdade de Medicina da UFMG), com apenas 16 anos. Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casou-se com Lygia Cabral Penna, com quem mais tarde teve duas filhas: Vilma (1931) e Agnes (1934). No mesmo ano formou-se em medicina. Iniciou o exercício da profissão em Itaguara (pequena cidade que pertencia ao município de Itaúna) onde permaneceu cerca de dois anos. Cobrava suas consultas pela distância que tinha de percorrer a cavalo.

Quando os pacientes não tinham dinheiro, os pagamentos muitas vezes eram sob a forma de aves e ovos, doces, bolos e frutas. ” (Rosa, 2009, p. 313). Tornou-se um médico respeitadíssimo naquela região. A convivência com sertanejos mais tarde iria inspirar suas obras. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932 trabalha como médico voluntário. Entra posteriormente para a Força Pública, chegando a ser oficial médico do 90 Batalhão de Infantaria em 1933, no município de Barbacena. “A angústia provocada pela sua extrema sensibilidade no convívio com a doença e a morte, que

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