Bordieu

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A eternização do arbitrário cultural masculino: apontamentos sobre a obra A Dominação Masculina de Pierre Bourdieu Por Felipe Gustavo Koch Buttelli* Leitura de: BOCJRDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. Do original La Domination Masculine, 1998. Introdução A obra A Dominação Masculina é certamente uma das mais conhecidas de Pierre Bourdieu. Baseada em sua pesquisa etnográfica entre os Cabilas do norte da África, sua atenção não pôde deixar de conc o próprio autor, sua intensamente o que sociedades mediterr diversidade cultural, or21 énero.

Segundo tradição carrega consciente das neste contexto a çao, e os processos de modernização tenham deixado suas marcas, para Bourdieu, é possível encontrar muitas explicações sobre o inconsciente – já um tanto camuflado – das sociedades da Europa Central e, por conseqüência da sua história colonizadora, de boa parte da sociedade ocidental. Os resultados desta pesquisa serviram de base para diversas obras de Bourdieu. Embora fosse tema recorrente em sua pesquisa na Cabilia, a dominação masculina, até 1 998, só havia sido tangenciada por artigos pequenos.

No entanto, esta sua eflexão – ainda que rápida e incompleta – contribuiu bastante para a discussão que se desenvolveu desde os anos 60, sobretudo na ordem do movimento feminista. Bourdieu teve ampla receptividade, tanto que alguns conceitos que apresentava para descrever o processo de dominaçã dominação masculina tornaram-se senso comum, tais como habitus, Incorporação da dominação, etc. Suas teses foram logo bastante questionadas e criticadas, principalmente pelo seu caráter supostamente determinista.

Também a compreensão de Bourdieu sobre a ineficácia do trabalho de conscientização foi rechaçada. Não pudera ser diferente. A reflexão feminista era (e ainda é) fortemente engajada e o conceito de conscientização tornava-se importante na prática de mulheres que procuravam a libertação das estruturas androcêntricas. Este trajeto de negação de um determinismo social e de exaltação da prática conscientizadora é justificável, visto que nas batalhas cotidianas para criar um espaço novo para as mulheres, lidar com este entrave epistemológlco seria demasiadamente penoso e desmobilizante.

Ao retomar a discussão em 1998, ampliando-a, atualizando-a e respondendo a críticas, Bourdieu ressalta que o trabalho de eministas trouxe muitos frutos positivos para a organização social, abrindo novos espaços e frontes de atuação para mulheres que ainda não existiam. No entanto, sua contribuição é reafirmada. Ele percebe que a abertura para as mulheres do espaço público não representou uma equalização nas relações de género. O processo de diferenciação entre homens e mulheres se deslocou, atuando muito mais na apreciação do valor da atividade masculina e feminina.

Em poucas palavras, a forma de organização social androcêntrica permanece. É baseado nesta constatação que ele parte para demonstrar que mudança social, que gere igualdade nas relações de gênero, deve partir das instituições que produzem e reproduzem o imaginário androcêntrico – família, PAGF partir das instituições que produzem e reproduzem o imaginário androcêntrico – família, escola, Igreja e Estado. Este imaginário continuamente se reforça, criando nos corpos e nas mentes de homens e mulheres disposições permanentes para perceber a dominação masculina como algo naturalmente justificável. ara esta importante tarefa, ainda não plenamente (ou apenas superficialmente) realizada, que Bourdieu se dedica nesta obra em muitas outras, como em A reprodução, onde se reflete o papel da escola na produção de uma ordem elitista dominante. A Dominação Masculina deve, portanto, fazer parte das leituras daquelas e daqueles que visam desmistificar os processos que nos enclausuram em papeis sexuais fixos, papéis estes que são tão pesados para os homens, mas multo mais pesados para as mulheres.

A Obra O foco de atuação da análise de Pierre gourdieu — e ele mencionaria, do empenho feminista – deveria ser modificado do lugar no qual inicialmente aparenta estar para outros lugares, ou eja, da esfera das relações domésticas, embora este foco ainda seja demasiado importante, para uma focagem que perceba a construção das relações de dominação na esfera pública e social. Esta seria composta por instituições capazes de eternizar o arbitrário cultural da dominação androcêntrica: a família, a escola, o Estado e a Igreja.

Em Uma Imagem Ampliada, gourdieu apresenta sua tese fundamental sobre o complexo processo através do qual homem e mulher são arbitrariamente diferenciados. Após haver construído sua tese (para a qual se reservará aqui maior espaço) aseado nos cabilas, em Anamnese das constantes ocultas, Bourdieu procura resquícios desta cultura PAGF 91 nos cabilas, em Anamnese das constantes ocultas, Bourdieu procura resquícios desta cultura – propriamente mediterrânea – na sociedade européia.

Em Permanências e Mudanças, Bourdieu já apresenta uma análise crítica da sociedade hodierna, vislumbrando encontrar onde houve mudanças perceptíveis em relação a uma sociedade tradicionalmente androcêntrica e onde pode-se afirmar continuarem os processos de diferenciação, negativos para mulheres e positivos para homens. Uma imagem ampliada Para Pierre Bourdieu, a dominação masculina pode ser compreendida como tendo sustentação em uma divisão arbitrária entre homens e mulheres.

Esta dlvisão é concebida através de oposições binárias, que classificam uns e outros segundo adjetivos opostos, sendo reservados os positivos a homens e os negativos a mulheres, como, por exemplo: alto-baixo, reto-curvo, seco-úmido, etc. respectivamente (ver tabela em BOURDIEU, 1998, p. 19). Esta maneira de se classificar (taxinomia) homens e mulheres, a partir de um esquema de oposições binárias, é o princípio de um trabalho de construção social dos corpos, ue visa tornar verdadeira — fatídica – a divisão arbitrária que o próprio esquema de pensamento dominante formula.

Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos traços distintivos (por exemplo em matéria corporal) que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as naturalizam, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência; de modo que as previsões que eles engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do mundo, sobretudo p 1 as previsões que eles engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do mundo, sobretudo por todos os ciclos biológicos e cósmicos. BOURDIEU, 1998, p. 16). Nesta passagem, Bourdieu apresenta como as oposições homólogas, em verdade, não percebem divisões pretensamente naturais que existem na ordem das coisas, mas categorizam, ou produzem, arbitrariamente estas oposições, ou seja, criam uma diferença natural. Este processo faz uso de características ffsicas existentes no plano biológico.

No entanto, faz uso dele, quase como um apoio, no qual fundamenta uma diferença ue é construção social. Assim, as diferenças sociais parecem fundamentadas em diferenças biológicas, quando na verdade elas (diferenças sociais) são capazes de criar cognocitivamente categorias de percepção que geram esta impressão. Seu argumento se concentra, então, em afirmar que o biológico é criação do social.

Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói a diferença anatômica e que é esta diferença socialmente construída que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social que a alicerça, ca(mos em uma relação ircular que encerra o pensamento na evidência de relações de dominação inscrltas ao mesmo tempo na objetividade, sob a forma de divisões objetivas, e na subjetividade, sob forma de esquemas cognitivos que, organizados segundo essas divisões, organizam a percepção das divisões objetivas. BOURDIEU, 1998, p. 20). Em seqüência, Bourdieu atenta para a circularidade deste processo de criação da realidade social e biológica, que é o fundamento das relações de dominação, inclusive – e neste trabalho sua maior preocupação – das relações s 1 trabalho sua maior preocupação – das relações entre os sexos.

A lógica da dominação já está presente no trabalho de construção social do biológico, o que faz parecer que toda dominação seja justificada por ser verificável no plano biológico (que é construto social). Sendo assim, a lógica da dominação é desconhecida, não aparece nos discursos sobre a realidade social ou biológica, pois se encontra na gênese do processo. Pelo fato deste ser cíclico, a ordem social e biológica sempre tende a reforçar a lógica da dominação que as constitui. (BOURDIEU, 1998, p. 2). Se a relação sexual se mostra como uma relação social de ominação, é porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o mascullno, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo – o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino como desejo de dominação masculina, como subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento erotizado da dominação. BOURDIEU, 1998, p. 31). Seguindo adiante no que se refere à construção social dos corpos – este arbitrário cultural que sofre o processo de naturalização, azendo parecer que os corpos são o fundamento da diferença social entre homens e mulheres, quando na verdade os corpos, como os percebemos, já carregam as insígnias dos preconceitos sociais favoráveis aos homens e desfavoráveis às mulheres – Bourdieu menciona que ela (a construção social dos corpos) atinge homens e mulheres nas suas práticas cotidianas.

Assim, o processo de oposições homólogas está homens e mulheres nas suas práticas cotidianas. Assim, o processo de oposições homólogas está presente na maneira com que mulheres e homens lidam com o seu corpo, pertencendo homem a um espaço que não cabe à mulher e vice-versa. Há apreciação positiva para as tarefas, lugares e comportamentos masculinos, enquanto, aos comportamentos, tarefas e práticas femininas se reserva uma apreciação negativa. Para Bourdieu, esta maneira de relacionar-se se impõe também à vida sexual, ou, como ele chama, à divisão do trabalho sexual.

O comentário acima expõe aquilo que ele compreende como parte do processo de construção dos corpos. O princípio de divisão social que naturaliza as diferenças, corporifica-se no homem a tal ponto de cnar nele o próprio desejo pela dominação, enquanto que na ulher – a qual, por causa deste processo vicioso e inconsciente, contribui para sua dominação – existe o desejo e o prazer, como de quem realiza sua vocação, em ser dominada e subordinar- se, até mesmo em nível sexual, à agressão de ser possuída, violentada, dominada.

Não sem críticas permanece esta postura de gourdieu, sobretudo pelo trabalho de feministas. Bourdieu reconhece que essencial neste trajeto de construção dos corpos é a maneira como acontece a “somatização das relações soclais de dominação”, ou a “incorporação da dominação”. A partir das oposições homólogas (alto-baixo, reto- urvo, fora-dentro, etc. , formam-se categorias de percepção que projetam sobre o corpo (biológico) as categorizações dos dominantes, formando-os em corpos sociais (ainda que se queira considerá-los naturais) que já carregam de antemão as ins[gnias distintivas que estabelecem funções, luga PAGF 7 considerá-los naturais) que já carregam de antemão as insígnias distintivas que estabelecem funções, lugares, posturas sociais diferenciadas para homens e mulheres.

Indo um pouco além na sua reflexão, ele menciona que há duas operações imprescindíveis nesta sociodicéia masculina: “ela legitima ma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela uma própria construção social naturalizada” (BOURDIEU, 1998, p. 33).

O trabalho de construção simbólica não se reduz a uma operação estritamente performativa de nominação que oriente e estruture as representações, a começar pelas representações do corpo (o que ainda não é nada); ele se completa e se realiza em uma transformação profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto é, em um trabalho e por um trabalho de construção prática, que impõe uma definição diferencial dos usos egítimos dos corpos, sobretudo os sexuais, e tende a excluir do universo do pensável e do factível tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero – e em particular todas as virtualidades biologicamente inscritas no “perverso polimorfo” que, se dermos crédito a Freud, toda a criança é – para produzir este artefato social que é um homem viril ou uma mulher feminina. (BOURDIEU, 1998, p. 33). Este processo de construção duradoura dos corpos de homens e mulheres, suportes das diferenças que geram, respectivamente, destino social positivo e destino social negativo, e a somatização estas diferenças e de seus efeitos nos corpos não surge da noite para o dia. Não é através de um rito apenas que um homem se torna homem conforme os padrões de determinada sociedade, muito embora os ritos homem conforme os padrões de determinada sociedade, muito embora os ritos de instituição tenham um imenso poder de diferenciação e sejam simbolicamente muito eficazes.

O trabalho de construção da realidade simbólica é um trabalho sutil e imperceptível de criação simbólica das categorias de percepção social do mundo. É um trabalho de inculcação longo e duradouro ue possibilita a construção de um habitus adaptado à visão de mundo dominante – isto é, androcêntrica. Assim, ao se fixarem nos corpos, já que esta construção simbólica efetivamente se somatiza, as relações entre homens e mulheres só podem ser de conhecimento e reconhecimento tácito e automático da legitimidade do exercício do poder de um sobre o outro. portanto, o comportamento prático dos corpos está inalienavelmente condicionado a todo processo simbólico de criação da diferença social – tornada auto-evidente, natural, percebida como inquestionável pelo senso comum.

Assim, a aneira de postar-se, de exibir seu corpo, de andar em público, de relacionar-se com pessoas de outro sexo, sobretudo para as mulheres, está condicionada a reproduzir o valor simbólico que a doxa, o discurso dominante e androcêntrico, lhes atribui: A educação elementar tende a inculcar maneiras de postar todo o corpo, ou tal ou qual de suas partes (a mão direita, masculina, ou a mão esquerda, feminina), a maneira de andar, de erguer a cabeça ou os olhos, de olhar de frente, nos olhos, ou, pelo contrário, abaixá-los para os pés etc. , maneiras que estão prenhes de uma ética, de uma política e de uma cosmologia (… (BOURDIEU, 1998, p. 38).

Tendo compreendido como acontece a construção social dos corpos, que biolog Tendo compreendido como acontece a construção social dos corpos, que biologiza ou naturaliza a visão dominante androcêntrica, e como que esta construção é incorporada ou somatizada, inscrevendo nos corpos estruturas de percepção do mundo social que diferenciam homens e mulheres (em nível de compreensão do mundo e de prática) a partir de um sistema de oposições homólogas, na qual ao homem cabem as categorias positivas e à mulher as negativas, Bourdieu parte para explicação daquilo que ele entende como sendo a maneira através da qual estes dois processos ocorrem: a violência simbólica. para Bourdieu, a construção soclal de homens e mulheres – que se incorpora, de fato, fazendo parecer que é natural esta maneira de concebê-los – está fundada na ordem simbólica (BOURDIEU, 1998, p. 45).

Esta ordem simbólica é conhecida e reconhecida, aceita em forma de crença, de adesão dóxica, ou seja, irrefletida, não carece comprovação, não tem que ser pensada ou afirmada como tal, pois o habitus de homens e mulheres está condicionado a perceber o mundo somente a partir das ategorias de percepção que esta ordem simbólica imputa. para fazer melhor compreendldo o que Bourdieu entende por simbólico, ele mostra justamente aquilo que não é sua compreensão de simbólico, rebatendo críticas e más compreensões vinculadas à sua tese. Para Bourdieu, violência simbólica não minimiza a violência física e não quer desvirtuar a importante discussão sobre violência doméstica. A violência simbólica é o fundamento, aquilo que justifica a agressão – no sentido de oferecer razões para que homens possam arrogar-se a prerrogativa de tornarem-se agress

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