A reestruturação capitalista da sociedade

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Estud. sociol. , Araraquara, v. 16, n. 31, p. 421446, 2011 421 A REESTRUTURAÇÃO CAPITALISTA DA SOCIEDADE E O RESSURGIR DA ECONOMIA SOLIDÁRIA Kelen Christina LEITE* RESUMO: O artigo que se segue é resultado de algumas refl exões e discussões desenvolvidas junto ao grupo de Pesquisa Trabalho, Organização Social e Comunitária, bem como junto ao Grupo de pesquisa Educação, Comunidade e Movimentos Sociais acerca da intrínseca relação existente entre a reestruturação oral capitalista da socieda to view nut*ge modo de regulação fordista/keynesianist artigo se divide partir da crise do mia Solidária.

O m três momentos. O primeiro busca tratar alguns elementos que caracterizam a o modo de regulação fordista/keynesianista que, em sua crise, a partir dos anos de 1970, abre as portas para a introdução das políticas neoliberais e a consequente precarização das relações de trabalho. O segundo momento busca trabalhar refl exões iniciais acerca da concepção de Economia Solidária bem como seu ressurgimento após o recrudescimento das consequências socioeconômicas do neoliberalismo.

No último tópico, avançando em conclusões, são destacados alguns dos desafi os que se pretende ser diversa ? lógica do capital. UFSCar – Universidade Federal de São Carlos. Sorocaba – SP Brasil. 18048-090 – kelen@ufscar. br 422 Kelen Christina Leite Estud. sociol. , Araraquara, v. 16, n. 31, p. 421-446, 2011 Este artigo busca apresentar elementos que possam servir para uma compreensão desse processo.

Deste modo, parte-se do pressuposto que o ressurgir da Economia Solidária, e formas alternativas de economia, relacione- se com o contexto de reestruturação do capitalismo que ganha dramaticidade com as consequenclas das políticas neoliberais, que se mostraram limitadas quanto ? resolução de certas questóes socioeconômicas advindas do esgotamento do modo e regulação fordista/ keynesianista que, em sua crise nos anos 70, abriu as portas para a reestruturação do processo produtivo em nível tecnológico e organizacional; em nível das relações de trabalho, bem com das pollticas do Estado, que havia sido um dos pilares do modo de regulação anterior. A partir de então se intensifi ca, no Brasil e no mundo, uma retomada do que se convencionou denominar de Economia Solidária, Economia Social, Economia Popular e Economia Civil.

Sendo assim, far-se-á uma discussão sobre o modo de regulação fordista/ keynesianista bem como os pontos primordiais de sua crise nos nos de 1970 para, a seguir, introduzir algumas refl exões sobre as concepções de Economia Solidária, PAGF os periodos excepcionais da história justamente quando eles entram em declínio. pode-se dizer que asslrn ocorreu com os anos de ‘ouro do capitalismo’. Sua exuberância foi verdadeiramente percebida nos conturbados anos da década de 1970, a partir da crise que abala todo o sistema capitalista mundial e a partir da qual se tem uma profunda reestruturação com signifi cativas mudanças no setor produtivo, com a introdução de novas tecnologias e novas formas de organização da produção; no etor fi nanceiro, com a desregulamentação fi nanceira e, em nível do Estado, com a implementação das políticas neoliberais.

Desta forma, os anos de 1 970 podem ser tomados como um ponto de infl exão para o entendimento dos acontecimentos do fi m do século XX e in(cio do terceiro milênio. A importância desta década é percebida e ressaltada por muitos autores (HOBSBAWM, 1995; 2009); CASTEL, 1995; ARRIGHI, 1997; OFFE, 1997; KURZ, 2004 e outros). A partir dos anos de 1950, pode-se dizer que se tornou real a sociedade do pleno emprego, pensada e planejada para recuperar-se do pós-guerra, criando m mercado consumidor necessário à produção em massa e detendo o avanço do 423 A reestruturação capitalista da sociedade e o ressurgir da economia solidária Estuda sociol. , Araraquara, v. 16 n. 31 socialismo ao estabelecer . 21-446, 2011 e compromisso entre atividade econômica, propiciando um bem estar para a população e incentivando, ainda, a geração de um mercado de consumo em massa, necessidade essa tao bem analisada por Antonio Gramsci (1988, »375-407) já no célebre Americanismo e Fordismo, quando diz que: O americanismo e o fordismo derivaram da necessidade imanente de organizar uma economia programática. … ] Com isso determinou-se a necessidade de elaborar um novo tipo humano, conforme ao novo tipo de trabalho e produção. O signifi cado e o alcance objetivo do fenômeno americano constituiu-se no maior esforço coletivo realizado até agora para criar, com rapidez incrível e com uma consciência do fi m jamais vista na História, um tipo novo de trabalhador e de homem [… O chamado alto salário do fordismo, é um instrumento para selecionar os trabalhadores aptos para o sistema de produção e de trabalho e para manter a sua estabilidade As mudanças não podem, porém, realizar-se apenas através a coerção, mas só através da combinação da coação com a persuasão, inclusive sob a forma dos altos salários, isto é, de possibilidade de melhorar o nível de vida, ou melhor, mais exatamente, de posslbilldades de alcançar o nível de vida adequado aos novos modos de produção e de trabalho, que exige um dispêndio de energias musculares e nervosas. Para Gramsci, portanto, q [lia, de formas de demandado pelo fordismo. Deste modo, o fordismo signifi cou, para além de um modo de organizaçao do processo produtivo, a reorganização de um modo de vida. Os novos métodos de trabalho tornaram-se inseparáveis de um modo especfi co de iver, de pensar, de sentir a vida, estabelecendo, portanto, uma nova organização do trabalho; um novo tipo de trabalhador; consumo em massa; nova organização familiar e até uma nova personalidade.

Assim sendo, nos países desenvolvidos, o modo de regulação keynesianista serviu para reconstruir e dinamizar o capitalismo no pós-guerra, estabelecendo, na prática, o compromisso entre capital e trabalho que buscava compatibilizar a acumulação do capital com uma distribuição de renda apta para 424 Estud. sociol. , Araraquara, v. 16, n. 31, p. 421446, 2011 ampliar a demanda global e garantir padrões de vida inclusivos ara a maioria da população. Ganhos para os assalariados também foram obtidos em outros países como o Brasil, ainda que de forma diferenciada e, por vezes, menos abrangente. Economicamente, o equilíbrio desse compromisso entre captal e trabalho dependia da coordenação entre crescimento da produção e lucros estáveis com ganhos e aumentos salariais.

Um afrouxamento na ascensão da produtividade e/ ou um aumento despropo lárias resultaria, PAGF s OF contradições internas. Tais limites e contradições tornaram-se evidentes quando o sistema técnico-produtivo esgotou as possibilidades de aumento da produtividade em ritmos ufi cientes para atender, simultaneamente, às demandas do capital e do trabalho. Então, o consenso social, necessário para dar sustentação ao modelo, entrou em crise, visto que a forma de distribuição social da renda passou a colidir frontalmente com os interesses da acumulação de capital. percebe-se, portanto, que a crise que está à base de todo o processo é uma crise de rompimento do consenso social, de esgarçamento do tecido social, rompimento do pacto social. O regime de acumulação fordista/keynesianista pode ser considerado, assim, uma fase particular do desenvolvimento capitalista, caracterizado or investimentos em capital fi xo que criam uma capacidade potencial para aumentos regulares da produtividade e do consumo em massa. para que esse potencial Se realize faz-se necessária uma politica e uma ação governamental adequada, bem como instituições sociais, normas e hábitos comportamentais apropriados (o modo de regulação). O keynesianismo é, pois, descrito como o modo de regulação que permitiu que o regime fordista emergente realizasse todo o seu potencial. E este, por sua vez, e concebido como a causa fundamental da crise da década de 1970.

Resumindo, são muitos os ontribuíram para a PAGF 6 OF to, de garantia da paz e da ordem social; objetivos de formação e reivindicação de direitos através da mobilização dos movimentos operários e sociais em geral; transformações no curso da vida e dos sistemas de necessidades, 1 para uma discussão sobre as causas essênciais da crise dos anos de 1970 ver: De La Garza Toledo (1 995), O ‘ Connor (1 977), Altvater (1 986), Offe, Jurgen e Windried (1 980), aarry (1995), Boyer (1990) e A righi (1997). 425 economa solidária por exemplo, que emergem da exigência de formação permanente, aumento da presença familiar na esfera do trabalho remunerado etc; udanças de caráter sociodemográfi co, imigração, envelhecimento da população.

A pluralidade de direções que um argumento como esse abre é evidente e, para permanecer em um âmblto circunscrito, a própna refl exão sociológica foi atravessada por diversas correntes interpretativas e de análise, desde as abordagens de matriz prevalentemente marxista, que atribuem o desenvolvimento do Estado do bem-estar social à fi nalidade e exigências próprias do desenvolvimento capitalista, até abordagens que partem de uma perspectiva durkheiminiana, segundo a qual o desenvolvimento do Estado social é atribuível ao crescente ontraste da capacidade de oferecer proteção por parte dos grupos sociais primários e secundários e a complexa intensifi cação d s de integração social em PAGF 7 OF Sociologia Política na qual o desenvolvimento do welfare (bem- estar) é associado a um processo de democratização das decisões e ao crescente papel político dos grupos portadores de interesses comuns.

Seja qual for o foco de análise adotado, bem como sua perspectiva teórica, insistimos no fato que a reestruturação capitalista, instaurada a partir da crise dos anos de 1970 e levada a cabo nos anos de 1980, intensifi cada nos anos de 1990 fazendo sentir suas consequências nos anos 2000, envolveria, portanto, todo o processo produtivo em nível tecnológico e organizacional; as relações de trabalho, isto é, os modos de contratação, de uso e remuneração da força de trabalho, assim como as pol[ticas do Estado, que foi um dos pilares do modo de regulação anterior. Estar(amos, ao lado dos aspectos econômicos, também diante de uma crise de valores. Algumas características da crise dos anos 1970 No final dos anos 1960 e início dos anos 1970 houve, portanto, esgotamento da capacidade de aumentar a produtividade com a base técnica do ordismo: tornou-se incompatível assegurar aumento da acumulação com aumentos salariais e bens sociais.

Instaurou-se, então, a famosa crise dos anos 1970 com algumas características marcantes e resoluções práticas que foram, efetivamente, tomadas no sentido de tentar resolver os problemas advindos da crise. Na produção verificou-se os trabalhadores ao Leite paradas de produção, no trabalho mal feito, nas peças defeituosas e no desperdício, elevando o custo da produção. Na tentativa de solução, as empresas buscaram melhores condições de exploração das oportunidades organizacionais e tecnológicas, ferecidas pelo avanço da automação baseada na microeletrônica, e pelos novos modos de “produção fl ex[vel”. Houve também todo o movimento de enriquecimento das tarefas e dos grupos de trabalho semi-autônomos. O que, na prática, signifi cou uma intensifi cação do trabalho.

A internacionalização da produção foi, por exemplo, uma das respostas do capital à crise do modelo de acumulação fordista frente à força de resistência do movimento operário. A internacionalização signifi cou a transferência de postos de trabalho de áreas com movimento operário forte para áreas com movimentos inexpressivos. Este fato ocorreu, também, dentro de um mesmo país quando indústrias instaladas em grandes centros transferiram-se para regoes onde o movimento operário é menos articulado e organizado, processo esse ainda mais intensifi cado pela guerra fi scal entre os países ou entre Estados de um mesmo país como a que se assistiu no Brasil, durante a década de 1990, na disputa pelos escassos investimentos produtivos, sejam eles nacionais ou não.

Chesnais (1995, 2004) atribui ao rocesso de deslocalização em direção aos comerciais dos países que participam do oligopólio mundial e cujo efeito consiste em poder jogar em oncorrência a oferta da força de trabalho de um lado para o outro. A expansão do sistema capitalista baseou-se na integração simultânea, no âmbito de Estados- nações “regulados”, de três mercados, o mercado de mercadorias, o de capitais (e tecnologias) e o do trabalho. Pelo seu movimento de mundialização, o capital explode esta integração e, evidentemente, não se preocupa em reconstituí-la. O sistema mundial é fortemente integrado no aspecto fi nanceiro e ainda mais quanto aos investimentos diretos.

Mas não é integrado quanto ao preço de venda e às condições de utilização da força de trabalho pelas fi rmas. Estas têm toda liberdade para explorar como quiserem as diferenças na remuneração do trabalho, entre diferentes países e regiões (CHESNAIS, 2004, p. 18). A mobilidade do capital, favorecida pela liberalização e desregulamentação dos mercados altera, ainda, o poder do Estado-naçáo, no seio do qual os famosos efeitos compensatórios podiam ocorrer outrora. Anteriormente, mesmo no âmbito capitalista, o combate ao desemprego podia se benefi ciar de medidas de proteção alfandegária e Incluir medidas legais, cujo efeito era relativamente restritivo para 427 Estud. sociol. , Araraquara, 21446, 2011

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