Contracultura

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A contracultura e as relações de poder na contemporaneidade ARMANDO ALMEIDA[I O objetivo discussão do papel e to view nut*ge uir para a ra na sociedade contemporânea. Parte-se de que em fins dos anos 60 toda uma revolução de costumes e valores, a ela associados, desloca para o campo da política uma enormidade de temas que não habitavam os territórios institucionalizados das negociações sociais: a questão homossexual, feminina, negra, ambiental, étnica, etc.

Para tanto, elege-se para dialogar com o assunto, pnoritariamente, uma coletânea de textos de Foucault dedicada inquirir sobre as relações de poder na contemporaneidade, especialmente voltada a dimensionar os micropoderes na trama social. Inquirir sobre a “genealogia das relações de força” é aqui uma tentativa de compreensão da capacidade e amplitude que tiveram aqueles acontecimentos de produzir efeitos. Pois a questão em apreço cobra uma “análise ascendente do poder”, que parta das células mais elementares da sociedade, que vá além da classe social e valorize o cotidiano. ontracultura aquele conjunto de fatos sociais que vai reverberar intensamente mundo afora a partir de maio de 68 na França e do ovimento hippie nos EUA. Ao longo deste artigo espera-se que discussões de algumas de suas características possam torná-la mais evidente. E de algum modo melhor esclarecer o que por ela se entende. Particularmente em a Microfísica do poder[2], Michel Foucault (2006) faz reflexões que me provocam intensamente.

Pela grande afinidade que têm com o tema que intento desenvolver na tese de doutorado: uma investigação acerca do significado da contracultura sobre as relações de poder na contemporaneidade, com foco na chamada “reafricanlzação” recente da Bahia. Razão porque nesta obra aqui me concentrei. Tentarei um diálogo com o conjunto do que está ali contido. Com a idéia central da coletânea, que arrisco sintetizar da seguinte forma: fazer uma reflexão sobre os mecanismos de funcionamento do poder, especialmente sobre a operacionalização dos micropoderes na trama social.

Vai ficando cada vez mais evidente, ao longo dos anos, que trazer novas temáticas para o território da política foi a grande contribuição da contracultura. Que, ao que tudo indica, sutilmente mudaram a maneira de fazer política, ou ao menos lhe ampliaram o leque e redefiniram papéis sociais na contemporaneidade. Não por acaso, Foucault reconhece em aio de 68 um marco que lhe tornou possível ir além, em suas inquietações filosóficas sobre penalidades, prisões e disciplinas, sobretudo pela “significação politica” que questões como estas adquiriram desde então (FOUCAULT, 2006, p. ). A inclusão do cotldiano na arena polít PAGF 38 cotidiano na arena política é responsável, segundo ele, por um novo momento no estudo da “mecânica do poder”, precisamente por permitlr analisar as “malhas mais finas da rede” soclal de poder[3]. Antes de seguir adiante, cabe fazer uma observação, por permitir não apenas o esclarecimento da noção que aqui se tem e contracultura, mas principalmente por melhor exemplificar a natureza do poder em questão.

Destaque-se que, o que aqui se identifica como grandes ligas das inquietações contraculturais são precisamente questões típicas do campo da cultura, obviamente, enquanto conjunto de valores e costumes, como parecia querer significá-la aqueles que lhe batizaram. O que se trouxe à baila, sem dúvida, não faz parte do tradicional território das lutas políticas. O que se colocava na rua para debate eram tabus culturais e morais. Indo mais além, questionavam-se as relações de reprodução da vida social no Ocidente. O chamado mundo judaico-cristão.

Seus costumes e seus padrões. Suas tradições e valores. Suas instituições sociais. Sua cultura, enfim. parece que a partlr da contracultura consolida-se uma nova maneira do fazer político. Algo como uma legitimação da polltica para além do partidarismo. Isto é, amplia-se o campo de luta política. Não por acaso, multiplicam-se iniciativas comprometidas com uma nova visão de mundo, sensibilidade e comportamento. Por extensão, pode-se dizer que, naquele momento, definitivamente politiza-se a cultura e o cotidiano.

Explicando de outra forma: não são as tradicionais uestões econômicas que darão o tom das luta Explicando de outra forma: não são as tradicionais questões econômicas que darão o tom das lutas que se delineiam a partir dali. Maio de 68, diga-se de passagem, não é, sob este aspecto, uma grande síntese, pois ainda estava muito marcada por um estilo tradicional de fazer política. Não apenas pela violência, mas também pelo que tinha de típico da luta operária de inspiração marxista. O pacifismo e o amor livre viriam a combinar melhor com o espírito da época.

Suas questões centrais foram além das relações de trabalho. Aliás, não parece ter sido por acaso que sta onda jovem do final dos anos 60 tomou sua forma mais bem acabada a partir dos Estados Unidos. Surge como expressão de certo estágio de abundância do capitalismo ocidental, marcado pela consolidação de uma sociedade de massa e por um alto grau de urbanização. Vêm de lá o Gay Moviment, o Women’s Lib e o Black Power, apenas para citar três frentes de luta social que foram diluídas e ressignificadas a partir daqueles anos e que viriam a ter grandes desdobramentos em anos posteriores.

O que se colocava no campo da negociação social não podia ser discutido apenas enquanto interesse de classe, embora uitas vezes não o excluísse. As questões em pauta obrigavam a que se fosse além. As questões femininas, homossexuals, étnicas e ambientais, por exemplo, permeiam indistintamente a todas as classes. Põem em discussão o paternalismo, as relações familiares e sexuais; e cobram uma significativa mudança comportamental. O conceito de classe é pouco para enxergá-las.

O mesmo se pode dizer, aliás, das questóes afeitas às crianças, aos loucos, aos doentes, aos 8 dizer, aliás, das questões afeitas as crianças, aos loucos, aos doentes, aos prisioneiros e aos índios[4], sujeitos sem voz a engrenagem econômica, como diria Foucault. O papel determinante da economia na crítica soclal, diz Foucault, foi, e tem sido o grande responsável pela negligência com as relações mais elementares de poder e pela redução de sua dimensão política na modernidade (Idem, p. 237). ? muito reveladora do que se diz acima, da sutileza do poder de que se trata e da trama em que está enredado a precaução de Foucault expressa logo abaixo: Não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter em presente que o poder – desde que não seja considerado de muito longe – não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detém exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos (2006, p. 83). Pode-se supor, a partir do próprio pensamento de Foucault sobre o poder, que seu trabalho intelectual é em grande medida resultado de um novo modo de ligação que se estabelece entre teoria e prática na contemporaneidade, em decorrências das “lutas reais, materiais e cotidianas” dos anos 60 (Idem, p. g). Ao mesmo tempo em que ampliaram o território da política, las exigiram uma ação para além dos “aparelhos ideológicos de Estado”, citados por ele.

Esta também é a razão porque para Stuart Hall – analisando o assunto a partir de sua experiência com os Estudos Culturais na Inglaterra – uma reflexão crítica sobre os vános domínios da vida e do poder pôde ser mais f PAGF s 8 Inglaterra – uma reflexão crítica sobre os vários domínios da vida e do poder pôde ser mais facilmente integrada “aos discursos sobre cultura do que sobre ‘exploração”‘ (2003, p. 203). quirir sobre a “genealogia das relações de força”, como Foucault se propôs, é também, em grande medida, uma entativa de compreensão da capacidade e amplitude que tiveram aqueles acontecimentos de produzir efeitos (2006, p. 5), e, deste modo, poder interferir sobre o real, mudando a “produção da verdade” (Idem, p. 14). Destaca-se aí, propositalmente, o lado militante e comprometido da ação intelectual. Fácil e imediatamente relacionável com Gramsci. Algo, aliás, quase obrigatório quando o assunto é cultura e poder.

Como para Gramsci, pensar o papel do intelectual é uma exigência natural da reflexão de Foucault sobre o poder. para ele os intelectuais são “agentes da ‘consciência’ e do discurso” (Idem, p. 71). Vale itar, pelo que tem de esclarecedor, este trecho de sua entrevista intitulada verdade e poder: “A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade” (Idem, p. 12), que corresponde “a um certo modo de viver ou morrer’ (Idem, p. 80). E mais. É ele mesmo quem diz da genealogia de que fala: é “um empreendimento para libertar a sujeição dos saberes históricos” (Idem, p. 172). Em 1976, em aula proferida no Collêge de France sob o título Genealogia e poder, Foucault registra a “proliferante riticabilidade das coisas, das instituições, das práticas, dos discursos” que se processa naquela década PAGF 6 38 discursos” que se processa naquela década; referindo-se, dos mais familiares e mais sólidos, aos mais descompromissados gestos cotidianos (2006, p. 59), aspectos bem evidentes, sobretudo, nas ações que marcavam a contracultura naquele instante. As questões por ela postas na mesa parecem ter tornado inteligíveis muitos dos confrontos (Idem, p. 3) que vêm fazendo parte, segundo Foucault, da organização da sociedade moderna desde o século XVIII, consolidada através de uma “rede rodutiva que atravessa todo o campo social” (Idem, p. 8), como ele diz, ao compor uma tecnologia de poder que, mais barata e eficaz, se afina com perfeição com a racionalidade exigida pelo capital.

São dele as seguintes palavras sobre este assunto: “As mudanças econômicas do século XVIII tornaram necessário fazer circular os efeitos do poder, por canais cada vez mais sutis, chegando até os próprios indivíduos, seu corpos, seus gestos, cada um de seus desempenhos cotidianos” (Idem, p. 214). Falo, pois, de uma ação sobre mecanismos sutis de que lança mão o poder na sociedade burguesa para fazer circular suas verdades, u seus “aparelhos de saber (Idem, p. 186). Um sofisticado sistema que opera sem “armas, violências fisicas e coações materiais” (Idem, p. 21 8). or meandros onde o poder tomou formas diversas de soberania e se constituiu como um novo poder (Idem, p. 188). Precisamente ali por onde a contracultura imiscuiu-se, minando as bases, ao que parece – por que não dizer assim – da estruturação desta rede de valores culturais e de suas conexões sociais, marcando, com isso, a contemporaneidade e a constitu PAGF 7 8 culturais e de suas conexões sociais, marcando, com isso, a contemporaneidade e a constituição de seu discurso pós- oderno. À contracultura também não passou despercebida a dimensão do corpo no jogo de poder.

Pode-se dizer que a partir daqueles anos vem ganhando acelerada naturalidade o direito à liberdade sobre o próprio corpo. Talvez, até, ele nunca tenha se expressado tanto. Isto pode ser pobremente exemplificado, ainda que à custa de certas visibilidades, na ampliação do direito ao aborto nas sociedades ocidentais, no direito a impedir a própria gestação através do uso de anticoncepcionais (o caso da pilula, como ficou conhecido) e na mudança de atitude frente à virgindade (o tabu da virgindade).

Foi também, reconhecivelmente marcante a adoção em massa de novos hábitos alimentares adquiridos a partir daqueles anos, e significativa a contestação dos conceitos de saúde e da qualidade de vida vigentes, muitas vezes, ironicamente postos contra a parede a partir da valorização de hábitos e valores típicos das culturas orientais, a exemplo da yôga, da macrobiótica e de uma série de novas técnicas corporais. Pondo em xeque, inclusive, a religiosidade ocidental pela confrontação com outras maneiras de ver o mundo e as coisas.

Além de promover uma outra relação com o meio ambiente, é claro. Voltando a Foucault. Pois, não lhe escapa como o corpo vem sendo formatado pela história, não apenas pelo ritmo exigido pelo trabalho, repouso e festa, mas como ele é “intoxicado” através dos hábitos alimentares e das leis morais (Idem, p. 70). “O controle da sociedade sobre o indivíduo não se opera simplesmente pela ideologia “O controle da sociedade sobre o indivíduo não se opera simplesmente pela deologia [diz ele], mas começa no corpo, com o corpo” (Idem, p. 0). A esta forma de controle ele chamou “bio-politica”. Sobre este aspecto, aliás, ele radicaliza. Chega a dizer que “não é o consenso que faz surgir o corpo social, as a materialidade do poder se exercendo sobre o corpo dos indivíduos” (Idem, p. 146). Não me sinto à vontade para discutir sobre suas razoes, por desconhecimento mesmo, mas parece evidente em Foucault uma resistência ao uso do termo cultura ao analisar o universo dos saberes, verdades, discursos, narrativas, mentalidades etc.

Diante do escopo deste trabalho importa destacar, entretanto, que são temas naturalmente muito afins. Especialmente próximos da dimensão antropológica da noção de cultura. Ao pensar sobre os “mecanismos polimorfos das disciplinas” (FOUCAULT, 2006, p. 189), como ele dizia das ossibilidades de enraizamento das relações de poder, indo além dos aparelhos ideológicos de Estado, portanto, Foucault se depara com questões ainda hoje muito recorrentes quando se pensa o funcionamento do poder e a dinâmica cultural.

A idéia de poder apenas como repressor e como algo que se constitui unicamente de cima para baixo (Idem, p. 238), por exemplo. (Visão que imobiliza uma ação política e impede mudanças nas relações de poder, diga-se de passagem). Em contraposição, Foucault chama a atenção de que o interdito, a recusa e a proibição não constituem a essência do poder, apenas o delimitam (Idem, p. 36). E vai adiante. Diz que não há como sustentar um poder que se baseia unicamente na força[5].

Razão porque a noção Diz que não há como sustentar um poder que se baseia unicamente na força[5]. Razão porque a noção de repressão como parte da natureza das instituições sociais mostra-se inadequada para apreender o “poder produtor, como ele se expressa (Idem, p. 7). Para Foucault este poder permeia a vida social, como um ‘feixe de relações”, produzindo discursos, formando saber e também induzindo ao prazer (Idem, p. 8). O poder se exerce através da construção de uma opinião. Da ormação de um consenso[6].

Através do compartilhamento de opiniões, pois, se exerce uma poderosa vigilância através do “olhar imediato, coletivo e anônimo” (Idem, p. 216/217), compondo “uma maquinaria de que ninguém é titular” (Idem, p. 219). A mecânica do poder exposta por Foucault o revela enigmático, “ao mesmo tempo visível e invisível”, presente e oculto; sempre investindo sobre todas as relações sociais e legitimado por uma verdade. O poder assim apresentado torna difícil identificar quem exerce e onde o exerce. Ainda mais porque ninguém é seu titular.

Está sempre sendo exercido em várias ireções e com diferentes intensidades, por instâncias íntimas de exercício do poder, por substituição de papéis e uma infinidade de práticas de controle (2006, p. 75). Como um sistema em rede, o poder nao tem centro. O que lhe fortalece são suas ligações. Suas relações culturais para ser mais exato. Cada elo da cadeia social, em alguma medida, reproduz o poder, o produz, e também o transforma. Foucault assim se expressa sobre o assunto: “quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indlv(duos, ati

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