Doença mental
A DOENÇA MENTAL A CURA: UM OLHAR ANTROPOLOGICO Amadeu Matos Gonçalves* Palavras Chave: Doença mental, Cura, Medicina oficial; Medicina popular; Itinerários terapêuticos, Antropologia medica.
RESUMO A saúde, a doença e os processos de cura são construções sociais, resultantes de um processo complexo que integra factores biológicos, socio-económicos, culturais, psicossociais e religiosos, que permeiam o contexto da história de vida das pessoas e exercem marcada influência nas suas atitudes face à doença e aos médica ser uma área s a or20 conhecimentos actua ne„•- dos reconhecidos pr conferida pelos uten da Antropologia Portugal, os m que, apesar cial, a atribuição tinua embebida em velhos sistemas de crenças populares.
Nas páginas que se seguem, faz-se referência a alguns aspectos socioantropológicos que valorizaram a contribuição das ciências sociais e humanas para a compreensão da saúde, da doença, dos processos de procura de saúde, das terapêuticas e dos terapeutas. 1 – INTRODUÇÃO A doença Mental foi percepcionada e interpretada de formas muito diversas ao longo da História; durante muito tempo explicada através de paradigmas pré- científicos, metaffsicos e mágico-religiosos.
As doenças mentais foram muitas vezes atribuídas ao castigo dos deuses, a possessões demon[acas, os remédios e soluções para os males do espírito procuravam-se junto dos que, baseados em conhecimentos e práticas ancestrais, muito enraizadas na cultura das populações, iam aliviando o sofrimento e satisfazendo as suas necessidades de saúde. * Licenciado em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica e Mestre em Ciências Sociais.
Assistente na Escola Superior de Enfermagem de Viseu. escola superior de enfermagem de Viseu – 30 anos Ainda hoje, em sociedades ditas civilizadas/desenvolvidas, globalizadas ontinua a coexistir essa mistura de interpretações em torno da doença mental – almas penadas, esp[ritos, possessão demon[aca, mau olhado, pragas, coisas ruins, feitiçarias, etc.
As concepções de saúde-doença e as práticas de cura não se inserem apenas no discurso da medicina oficial, dos profissionais de saúde, configurando uma expressão cultural própria, na procura de alternativas mediante mecanismos complexos, quantas vezes contraditórios, que se traduzem em respostas que contêm ao mesmo tempo, aceitação, incorporação ou resistência.
Confrontado com algumas destas questões, enquanto Enfermeiro specialista na área de Saúde Mental e Psiquiátrica, e o desejo de compreender com mais clareza a realidade em que vivemos e para a qual contribuímos, enquanto pessoas e profissionais de saude e da educação, entendi que seria pertinente “um olhar antropológico” em torno da doença mental e dos Itinerários seguidos pelos doentes na procura de saúde. 60 2 – PERSPECTIVA ANTROPOLOGICA DA DOENÇA MENTAL As questões ligadas à saude, à doença e processos de cura, enquanto fenómenos biológicos, psicológicos, sociais e culturais, têm os seus esquemas internos de explicação, construídos iferentemente pelo paradigma das Ciências Biomédicas e pelo Paradigma das Ciências Sociais A constatação do “desencontro” entre estes dois paradigmas, na prática clínica e na prestação de cuidados, bem como a percepção de que o paradigma biomédico nao e su PAGF clínica e na prestação de cuidados, bem como a percepção de que o paradigma biomédico não é suficiente para abordar toda a problemática da doença mental, e muito menos para a solucionar, tem levado muitos profissionais de saúde a interessarem-se pelas dimensões sociais, culturais e até mesmo espirituais implicadas na saúde, na doença e nos próprios rocessos de cura.
Assim se têm aproximado da Sociologia e da Antropologia, visando integrar nas ciências médicas os seus saberes e conhecimentos; esperando que dessa integração possam resultar vantagens, que por certo irão contribuir para a uma maior humanização dos cuidados de saúde prestados às populações. Como nota Berta Nunes “Postula-se o respeito pelo doente e pelas suas escolhas e exige-se dos médicos a superação do paradigma estritamente biomédico, que inspirou a sua formação por um alargamento da visão da saúde e da doença, fundado no conhecimento das práticas e dos padrões culturais ue dominam a comunidade onde trabalha” (1 987, p. 233).
Podemos assim dizer que os profissionais de saúde, por motivos relacionados com a sua formação académica e profissional, adoptam de forma privilegiada o escola superor de enfermagem de Viseu – 30 anos paradlgma “biomédico”, no qual é importante acreditar que aquilo que se estuda é fundamental para explicar a doença e promover a cura. É assim natural que, como refere Cristiana Bastos: ” Os profissionais de saúde não se interessam pelas abordagens de conteúdo mais Socio-antropológicos da saúde e da doença desprezam manifestamente as práticas que outros sectores promovem, sob a categoria de «Medicinas populares», ou seja as práticas e saberes tradicionais ligados à doença e à cura ” (1 987, p. 221). A Antropologia entendid p. 221). A Antropologia entendida por muitos como a ciência que estuda a cultura, o Homem como ser cultural e fazedor de cultura.
A Antropologia ligada à área da saúde, ou da medicina, à uma subdisciplina da Antropologia social e cultural que se consolidou na década de setenta, com investigadores anglo- saxónicos interessados na aplicação de técnicas e métodos da nvestigação antropológica, no sentido de encontrarem respostas para a universalidade das doenças e muito particularmente dos transtornos mentais. Como vimos, o paradigma biomédico, centrado numa visão individualista da doença e do sofrimento, ignora muitas vezes as determinantes sociais e culturais envolvidas. Esta atitude redutora confunde-se frequentemente com a actividade científica do médico e de outros profissionais de saúde, quando orientados por uma visão objectiva do sofrimento humano. ? a perspectiva de quem vê a doença, o órgão e desvaloriza a tradução subjectiva da doença, com as uas ramificações pessoais, familiares e sociais, que colocam a própria doença, como que do lado de fora do organismo. A noção de que a doença é uma entidade natural, cujas causas devem ser identificadas e combatidas em diferentes ângulos, tem sido discutida e problematizada pela antropologia médica (também designada por antropologia da saúde), surgindo no campo da psiquiatria e da antropologia social trabalhos de autores como (Devereu)ç 1981 ; Laplantine, 1991; Kleinrnan, 1988, 1992; GOOd, 1986, 1994; Helman, 1994; Eisenberg, 1988; Quartilho, 1995, 2001).
Estes autores ao estudarem a forma como os aspectos ocio-culturais influenciam a saúde, a doença e os processos de cura, ressaltam que, em todas as socio-culturais influenciam a saúde, a doença e os processos de cura, ressaltam que, em todas as sociedades humanas, as crenças, atitudes e práticas relacionadas com problemas de saúde são características fundamentais de uma cultura, do complexo cultural dos indivíduos e das populações. Como diz Silva Pereira (1993), ” As noções de corpo, doença, saúde são construídas social e culturalmente, devendo o antropólogo buscar o seu sentido junto das pessoas que as utilizam, como único meio e poder entender quais as estratégias sociais nos processos de manutenção e recuperação da saúde” (p 159).
A saúde, doença e cura são portanto constructos sociais que não podem ser estudados de forma isolada, isto é, não podemos compreender as reacções à doença, 161 escola superior de enfermagem de viseu – 30 anos morte ou outros infortúnios sem compreender o tipo de cultura que determinados povos foram assimilando ao longo de gerações. Como refere Quartilho (2001), ” a perspectiva do doente tem muito a ver com a sua experiência subjectiva, com as suas nterpretações partlculares sobre a origem e o significado dos sintomas, no contexto da sua vida social” (p. 17). Este autor, ao referirse ao conceito e importância do “comportamento de doença”, acrescenta que esse conceito pode associar uma confluência de variáveis biológicas, psicológicas, sociais, culturais e até mesmo espirituais.
Ainda neste contexto, e no âmbito das consultas de psiquiatria, os profissionais de saúde pretendem muitas vezes localizar a origem dos problemas pessoais, que trazem o utente/doente à consulta, mas não criam espaço e disponibllidade para que estes possam verballzar os seus roblemas, dúvidas, os seus medos e receios, em suma a sua história de vi PAGF s OF possam verbalizar os seus problemas, dúvidas, os seus medos e receios, em suma a sua história de Vida. Sabe-se hoje que a conduta individual à determinada pela biologia individual, pela interacção do indivíduo com o meio e pelas experiências vividas. A cultura então o “caldo” onde operam essas forças (biológica, sociológica e psicológica) e tudo isto leva a formas diferentes de percepcionar a doença mental, sua etiologia e tratamento. Mas o que à a cultura? Não é fácil defini-la. Cada investigador trabalha om o seu conceito. Em sentido geral, poderíamos entendê- la como tudo o que o homem acrescenta à natureza, mas uma concepção tão abrangente torna-se inoperante.
Para Marsella e Kameoka (1989), as culturas são: ” condutas aprendidas e compartidas, transmltidas de geração em geração com o fim de conseguir a adaptação, o crescimento e o ajustamento do individuo. possui tantos referentes externos como internos. Os externos incluem os objectos, papéis e instituições. Os internos incluem atitudes, valores, crença, expectativas, epistemologias e consciência” (p. 233). Para Kaplan & Sadock (1989), a antropologia édica é uma disciplina que: ” trata sobre el estudio transcultural de Ios sistemas médicos y sobre la influência de Ios factores bioecológicos y socioculturales sobre la salud y enfermedad.
Algumas áreas de interés común a psiquiatras y antropologos médicos son la dinâmica de la conducta de búsqueda de salud, los modelos de enfermedad mental, los sistemas de curacion, los sindromes definidos culturalmente, los estados mentales especiales, como los estados de transe y possesión por esp[ritos” (p. 253) Para Devereux (1981), a etnopsiquiatria é uma ciência pluridisciplinar que pretende abordar a relação de c 1981), a etnopsiquiatria à uma ciência pluridisciplinar que pretende abordar a relação de complementaridade entre o indivíduo, a sociedade e a cultura. No dizer de Laplantine (1978), ” Etnopsiquatria é uma pesquisa decididamente pluridisciplinar.
Esforça-se por compreender um conjunto de conceitos fundamentais que são os da psiquiatria (o normal e o patológico) e os da etnologia (as categorias universais da cultura)” (p. 16) 162 escola superior de enfermagem de viseu – 30 anos Kleinman (1 988), aprofundando o discurso dentro da antropologia médica, atenta para o facto de que dentro de uma mesma sociedade oexistem também diferentes sistemas de saúde, o que inclui uma multiplicidade de concepções sobre a doença, incluindo etiologia, fisiopatologia, definição de severidades, tratamento e diagnostico. Este autor diferencia três sistemas básicos de atenção à saúde: 163 sector profissional — que corresponde ao sistema médico instituído e aceite como formal nas sociedades ocidentais – o modelo biomédico. ector popular – composto por conhecimento leigo, gerado pelas percepções individuais e colectivas. sector alternativo – que inclui a medicina tradicional, que não pertence a edicina oficial composta pelos centros de tratamento religiosos e as chamadas medicinas alternativas. Kleinman (1992), defende PAGF 7 o entre as dimensões patológico dos órgãos ou sistemas fisiológicos ocorre independentemente do reconhecimento ou percepção pelo indivíduo ou ambiente social. A categoria enfermidade incorpora a experiência e a percepção individual relativamente aos problemas decorrentes da patologia, bem como a reacção social à enfermidade.
Essa percepção individual diz respeito aos processos de significação da doença que, para além dos ignificados culturais, há também os significados pessoais, que incluem não só os significados simbólicos particulares formadores da própria doença, mas também os significados criados pelo doente para poder lidar com a doença e controlá-la. O mesmo autor refere, ” No paradigma biomédico ocidental, patologia slgniflca mau funcionamento ou má adaptação de processos biológicos e psicológicos no indivíduo; enquanto enfermidade (estar doente), representa reacções pessoais interpessoais e culturais perante a doença e o desconforto, imbuídos em complexos nexos familiares, sociais e culturais.
Dado que a doença e a experiência de doença escola superior de enfermagem de viseu – 30 anos fazem parte do sistema social de significações e regras de conduta, elas são fortemente influenciadas pela cultura e por isso soclalmente construídas. ” (1992, p. 252). De acordo com o autor, a saúde, a doença e o tratamento são partes de um sistema cultural e, como tal, devem ser entendidas nas suas relações mútuas. Examinálas isoladamente é distorcer a compreensão da natureza dos mesmos e de como funcionam num dado contexto. Em relação ao tratamento e cuidados de saúde, Kleinman (1992), considerou ue uma das razões pelas quais diferentes processos de cura persistem numa mesma sociedade é o facto de eles agirem nas diferentes dimensões PAGF 8 OF de cura persistem numa mesma sociedade é o facto de eles agirem nas diferentes dimensões da doença.
Alerta para a necessidade de novos métodos interdisciplinares de atenção na doença, trabalhando simultaneamente com dados etnográficos, clínicos, epidemiológicos, históricos, sociais, psicológicos, pollticos, económicos e tecnológicos. Só assim se conseguirá descrever os sistemas individuais, fazer comparações entre istemas de diferentes culturas e analisar os impactos da cultura na doença e na cura. Também os estudos de Good (1986, 1994), deram continuidade à ideia de Kleinman sobre a relatividade conceptual e cultural da doença. Estes autores, partindo do pressuposto de que a cultura afecta a experiência e a expressão dos sintomas, tecem uma série de cr(tlcas à racionalldade médica ocidental e propõem um modelo cultural para a prática clínica.
Este autor, ao fundamentar a crítica ao modelo biomédico, parte do pressuposto de que a actividade clinica é fundamentalmente interpretativa, baseando-se no conhecimento e cadeias causais que operam ao nível biológico, seguindo um roteiro de descodificação das queixas dos doentes, a fim de identificarem o processo patológico, somático ou psicológico subjacente e posteriormente estabelecer o diagnóstico e propôr uma terapêutica. As pessoas não vivem isoladas, vivem como elementos activos nas suas comunidades (aldeias, vilas, cidades), nas suas famllias. A experiência das pessoas, nestes contextos tão heterogéneos, caracterizados por diferenças no estatuto social, género, etnicidade ou convicções religiosas, as quais influenciam a forma de encararem a doença e a cura. Desta forma, os técnicos de saude não devem ignorar ou subestimar o papel dos factores psicossociais na géne forma, os técnicos de saúde não devem ignorar ou subestimar o papel dos factores psicossociais na génese, persistência e resolução dos sintomas apresentados pelos doentes.
Para Quartilho (2001) as questões da doença ligadas à cultura, o contexto de vida ou os percursos biográficos individuais adquirem um estatuto marginal, quase exótico, no discurso da medicina instituída e os profissionais de saúde; centrando-se na visão individualista da biomedicina, afastam-se das intenções do odelo biopsicossocial, não conseguindo desta forma ajudar o doente e família a lidar com as suas preocupações relativamente à doença. 1 64 escola superior de enfermagem de Viseu – 30 anos Algumas doenças só podem ser devidamente explicadas e compreendidas se os técnicos de saúde abandonarem o quadro teórico do paradigma biomédico e partirem para a análise dos componentes étnicos e culturais do problema.
Será essa a premissa básica da antropologia médica, da psiquiatria transcultural como especialidade que tem como objectivo compreender a dimensão cultural das doenças mentais e a dimensão pslquiátrica das ulturas. Helman (1994) inclui a psiquiatria transcultural como uma das principais éreas da antropologia médica, e refere-se a esta área do saber da seguinte forma ramo da antropologia social e cultural, colocada entre as ciências naturais e sociais, nas margens da medicina e da antropologia, interessada no modo como as pessoas, em diferentes culturas e grupos sociais, explicam as causas do seu estado de saúde, de doença, os tipos de tratamento em que acreditam e aqueles a quem pedem ajuda, quando ficam doentes a psiquiatria transcultural consiste no estudo e na comparação da doença mental nas diferentes culturas” (