Isoladas – a história de oito mulheres criminalizadas por aborto

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A história de oito mulheres criminalizadas por aborto Textos: Evanize Sydow e Beatriz Galli Entrevistas: Evanize Sydow e João Roberto Ripper Fotos: João Roberto Ripper Capa e Projeto Gráfico: Carlos Vasconcelos Pitombo Isoladas Apoio: Fundação Heinrich Bõll e Action Aid Luisa Beatriz Laura Novembro, 2011 Índice Introdução 05 Pálida sua resistência Parte A angústia de Maria 15 0 medo de 23 A escolha de 31 A dúvida de Lorena . 3 A aflição de Olga or uas 57 0 direito de escolha de res. Belas em reviver 67 Este livro tem como objetivo documentar, em forma de depoimentos, as histórias de seis das cerca de 10 mil mulheres ue realizaram aborto em uma clínica de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, além de duas profissionais de saúde que trabalhavam no local. uma das questões presentes nesta documentação é a discussão sobre o estigma social pelo qual as mulheres ficam marcadas.

O que isso representa para as suas vidas, como elas lidam com ele, de que forma isso mudou a convivência com a família, os amigos, os companheiros e no ambiente profissional são algumas das questões que poderão ser vistas a partir dos depoimentos, nos dando a ótica de quem passa pelo abortamento inseguro e como isso atinge o seu dia- -dia. Chegar a essas mulheres e convencê-las a, pela primeira vez, falar sobre o que passaram foi o nosso desafio maior.

Elas vivenciam o estigma em suas diferentes formas. Foram cerca de dois anos buscando por essas personagens, tentando mostrar a elas que elas seriam respeitadas, bem como sua privacidade, tendo em vista que o maior medo que têm é que as pessoas mais próximas – familiares, amigos e colegas de trabalho – saibam o que passaram e as discriminem. Elas têm medo, têm angústla, têm dúvidas.

Não sabem como aqueles com quem convivem reagiriam se soubessem. Todas elas têm filhos, são u foram casadas, todas vivem em Campo Grande, uma capital que mantém o perfil de cidade onde todos sabem de tudo, daí a insegurança em serem reconhecidas e sof PAGF gg cidade onde todos sabem de tudo, daí a insegurança em serem reconhecidas e sofrerem ainda mais.

A partir dos seus relatos, esperamos desmistificar os tabus e preconceitos sobre o tema do aborto para que elas sejam vistas como mulheres comuns, mães, esposas, filhas, companheiras, que, em algum momento, optaram por não continuar a sua gravidez e que por isso passaram a ser consideradas suspeitas ou criminosas pelo Estado. Além disso, retendemos provocar uma reflexão mais ampla e baseada em fatos reais sobre o Impacto da cnrmnallzação do aborto para as mulheres e os vários níveis de estigma que elas vivenciam.

Evanize Sydowl Beatriz Galli2 O caso Mato Grosso do Sul: aborto, estigma e discriminação Pelas vozes das mulheres3 Esta comunicação oral tem o objetivo de apresentar e discutir as histórias de vida e experiências de algumas das centenas de mulheres investigadas e processadas criminalmente por supostamente terem realizado aborto em uma clínica de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, a partir de documentação ral com base entrevistas temáticas com essas personagens.

O trabalho pretende analisar os relatos de estigma social em dimensões como convivência com a família, os amigos, os companheiros e no ambiente profissional. A análise a partir dos direitos humanos sobre a criminalização e o impacto na vida das mulheres que vivem enredadas pelo medo – bem como a sua falta de acesso aos serviços públicos de saúde, nos casos de aborto previstos em lei, são aspecto falta de acesso aos serviços públicos de saúde, nos casos de aborto previstos em lei, são aspectos importantes a serem apresentados e discutidos neste trabalho.

No Brasil, embora a leglslação não seja tão restritiva quanto em outro países a criminalização do procedimento impõe às mulheres elevados custos sociais, pessoais e familiares. A ilegalidade do aborto não impede que este seja praticado, mas implica riscos de saúde inerentes à clandestinidade. O aborto inseguro é a quarta causa de morte materna. A restrição criminal viola os direitos das mulheres a auto-determinação reprodutiva sobre uma circunstância que terá impactos definitivos sobre sua vida, violando os seus direitos humanos.

Sobretudo, como veremos a seguir, sujeita as mulheres a constrangimentos e exposição ública por parte de autoridades policiais, judiciais e da 1 Evanize Sydow, jornalista, mestre em História Contemporânea, Bens Culturais e Projetos Sociais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, consultora da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, desenvolvendo trabalho na Diretoria de Políticas para Mulheres Rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Maria Beatriz Galli, Advogada, mestre em Direito pela Faculdade de Direito da universidade de Toronto, membro do CLADEM Brasil Comite Latino-Americano e do Caribe elos Direitos da Mulher, associada de políticas para América Latina do Ipas. (www. ipas. org) 3 Este t Direitos da Mulher, associada de políticas para América Latina do Ipas. (www. ipas. org) 3 Este texto foi submetido para apresentação no Congresso Internacional Fazendo Genero 9, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolls, agosto de 2010. midia, violando direitos e contribuindo para o estigma social, como revela o depoimento a seguir: “Eu não consegui viver confortavelmente com isso até hoje. Então, remexer nisso, eu ser chamada para responder como um crime, e numa situação tão dolorosa… orque só eu estou sendo intimada? Este é ainda o meu grande questionamento. por que só nós, mulheres, somos punidas? Ninguém consegue me responder isso. Será que ninguém pensa nisso? por que só a mulher? Eu me sinto injustiçada.

Eu acho que o rapaz com quem eu me envolvi também é responsável, eu acho até que muito mais, porque se ele tivesse me apoiado, não que eu esteja querendo me isentar da culpa, mas eu acho que ele também é muito responsável por tudo isso, e com a vida dele não aconteceu nada. Agora eu tenho que ir ao fórum, todo mês, prestar contas, onde eu estou, onde eu moro. or dois anos eu vou ter que passar por isso, não posso sair daqui sem me comunicar. ” A violência traduzida em estigma pelo qual elas passam é nítida nos depoimentos carregados de dor, medo, emoção e indignação pela violação de seus direitos.

Cada história ali nos dá a dimensão do problema do aborto no Brasil. Nenhuma daquelas mulheres entrevistadas passou pela dolorosa experiência de int PAGF s OF gg aborto no Brasil. Nenhuma daquelas mulheres entrevistadas passou pela dolorosa experiência de interromper uma gravidez sem demonstrar que aborto não é algo pelo qual se passa porque se quer. Ninguem quer se sujeitar a condições insalubres, ninguém quer correr risco de morte, ninguém quer ser vista como uma transgressora. ? disso o que tratam os depoimentos emocionados e emocionantes que fazem parte desta pesquisa, feita, principalmente, utilizando a metodologia de história oral, que é importante para a abordagem deste tema pois as entrevistas . com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo”4 não apenas trazem as impressões e a memória do entrevistado a respeito do tema estudado ou do contexto histórico no qual o personagem se insere, mas também porque, uitas vezes, oferecem elementos para a pesquisa que não estão disponíveis em bibliografia.

No caso das mulheres que estão sendo processadas por terem feito aborto, esses elementos são fundamentais, uma vez que, a partir deles, podemos trabalhar com o conceito e a problemática do estigma social pelo qual elas passam. O texto “Histórias dentro da história”, de Verena Alberti, analisa as possibilidades de pesquisa pela história oral e mostra que um dos pnncpais atrlbutos desta é possibilitar o estudo das experiências passadas de pessoas ou grupos. Isto “torna possível uestionar interpretações generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas”5. ? o caso interpretações generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas”5. E o caso ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 2a edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 18 ALBERTI, Verena. “Histórias dentro da história”. In: PINSKY, Carla (org. ). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 165 7 do quanto as experiências pelas quais essas mulheres de Mato Grosso do Sul passaram vão refletir em sua vida, seja na relação com a família, com o seu parceiro ou com a sociedade na qual ivem.

Nesse sentido, as entrevistas com estas personagens trazem elementos que a pesquisa em bibliografia ou o levantamento quantitativo dos casos não oferecem, ou nos dá de forma generalizante e sem o elemento humano. Uma das questões presentes na documentação é a discussão sobre o estigma social pelo qual as mulheres ficam marcadas. O que isso representa para as suas vidas, como elas lidam com ele, de que forma Isso mudou a convivência com a famllia, os amigos, os companheiros e no ambiente profissional são algumas das questões que podem ser ouvidas e analisadas a partir dos depoimentos.

Dessa forma, a documentação do caso das mulheres de Mato Grosso do Sul nos dá a ótica de quem passa pelo abortamento inseguro e como isso atinge o dia-a-dia das envolvidas. Aquelas que se dispuseram a falar tratam de vários elementos deste problema de saúde pública. Um deles, inclusive, traz à tona a discussão da ética jornalística, já que, ao invadir a cllni PAGF 7 gg inclusive, traz à tona a discussão da ética jornalística, já que, ao invadir a clínica, a policia tinha a companhia de uma equipe de reportagem da TV Morena, afiliada da TV Globo em Campo Grande.

Será que algum momento eles pararam para pensar na ida dessas mulheres, eles não pensaram nos casamentos, nos relacionamentos, eles não pensaram em nada, foi somente pelo mero prazer de jogar a coisa no ventilador, ver respingar para todo lado, sair no Jornal Nacional, por questão de segundos? Se você visse no processo os argumentos da jornalistazinha, da menina, uma coisa tão infantil, tão pequena, que eu não conheço a vida da menina, não lembro nem da cara dela, mas só de ler as coisas que constavam lá, a fala dela… ma pessoa inexperiente, uma pessoa, acho, que nunca passou por uma dor na vida… e mexer com a vida de pessoas assim… Alguns dos depoimentos pesquisados apontam para casos em que as mulheres tinham direito de ter acesso ao aborto previsto em lei, mas por dificuldade de acesso e inexistencia de serviço de referência para recebê-las, terminaram por recorrer à cl[nica, como aponta o relato abaixo. Eu conheci uma pessoa e durou dois meses o nosso relacionamento. Aí eu descobri que ele era psicopata e separei. Ele ficou ameaçando a mim e a minha família toda.

Ameaçava de matar a minha família, de matar o meu irmão. Ele ia lá, dava tiro no portão de casa… ele foi na minha casa, deu um tiro no cadeado, entrou. A minha filha, na época, estava Depoimento de uma PAGF 8 OF gg minha casa, deu um tiro no cadeado, entrou. A minha filha, na época, estava Depoimento de uma das mulheres processadas 8 com 4 anos. Ele me violentou várias vezes. Fisicamente, psicologicamente… Colocava o revólver na minha boca. Eu tinha que ceder , ou cedia, ou ele matava alguém. Fiz vários boletins de ocorrência, mais de 12, mas nunca deu em nada.

Atribuo isso ao dinheiro que ele tinha. Eu fiz o aborto por desespero total. Tinha medo de minha filha ficar sem mãe. Agora me sinto humilhada com essa pena7. O estigma do aborto é amplamente reconhecido m pesquisas na área das ciências sociais, principalmente relacionado a processos de saúde e doença. A etnografia lida pouco com o estigma do aborto e o seu impacto negativo na saúde ou na vida das mulheres. 8 A interrupção da gravidez é um procedimento de saúde simples que deveria ser parte das politicas de saúde integrais.

Apesar disso, no Brasil, a prática do aborto é considerada crime, sendo permitido apenas nos casos de estupro e violência sexual. A legislação brasileira pune o aborto em seu Código Penal, no artigo 124, com uma pena para a mulher que pratica o aborto de 1 ano à 3 anos de prisão e no eu artigo 125 com uma pena de 3a 10 anos de prisão. Estima- se que, apesar de ser crime, ocorrem por ano no Brasil um milhão de abortos. g O estigma associado a criminalidade associada ao procedimento leva a que as mulheres e profissionais de saúde recorram ao procedimento em situação de clandestinidade.

Neste t mulheres e profissionais de saúde recorram ao procedimento em situação de clandestinidade. Neste trabalho nos interessa, particularmente, analisar o estigma relacionado a criminalização do aborto e o seu impacto nas várias dimensões da Vlda das mulheres: pessoal, familiar, profissional e social. A partir do marco os direitos humanos sexuais e reprodutivos, adota-se uma perspectiva de promoção da igualdade formal e substancial entre homens e mulheres em todas as dimensões de sua existência, como a auto-determinaçao sexual e reprodutiva10, sem discriminação, coerção ou violência. 1 Neste trabalho, partimos do pressuposto que a capacidade das mulheres de exercerem os seus direitos está determinada pelas dimensões privada e pública da sua vida soclal. A dimensão pnvada está relacionada à forma como as relações de gênero estão desenvolvidas no âmbito do casamento e relações familiares, se a mulher tem ou ão poder de tomar decisões sobre a sua vida privada, sexual e reprodutiva.

A dimensão pública está determinada pela existência de condições favoráveis para que a Depoimento de uma das mulheres processadas Kumar A. et al, Conceptualizing abortion stigma, Culture, Health and Sexuality, Vol. 11, No. 6, Agosto 2009, 625-639. Adesse, Leila e Monteiro, Mano. 2007. Magnitude do aborto no Brasil: aspectos epidemiológicos e sócio-culturais. IPAS Brasil/lMS/UERJ. (http://bvsms. saude. gov. b /bvs/publicacoes/magnitude_aborto _brasil. pdf) 8 g 10 Sobre os direitos humanos relacionado

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