Leituras obrigatórias – análises
Análise Leituras Obrigatórias 2007 A Rosa do Povo Carlos Drummond d CONTEXTO HISTORIC 0 p Os poemas de A rosa do povo foram escritos entre 1943 e 1945, quando os horrores da II Guerra Mundial angustiavam a humanidade e o exército nazista recuava, especialmente na extinta União Soviética. Graças à obstinação heróica do povo russo e sua imensa capacidade de sacrifico, as melhores divisões alemãs tinham sido desbaratadas no leste europeu, prenunciando a capitulação do III Reich. À angústia da época somava-se, pois, uma reverência comovida da civilização ocidental aos soviéticos.
O confronto apitalismo x comunismo, que se desenhara desde 1917, estava momentaneamente eclipsado na união de esforços contra o nazismo. Stálin não era mais o ditador monstruoso da década de 1930, mas um dos líderes da luta contra a barbárie. Havia, portanto, nos meios intelectuais e artísticos não-comunistas, uma empatia não apenas com o povo russo, mas com o regime que sombria: . obra que, de certa maneira, reflete um “tempo”, não só individual mas coletivo no país e no mundo. (… Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo – e está dito o necessário. ” (2) UMA OBRA INOVADORA Em seu conjunto, A rosa do povo traz importantes novidades: 1) É a mais extensa de todas as obras de CDA, composta por 55 poemas. Embora em seu próprio título haja uma simbologia revolucionária, sem contar o número expressivo de poemas socialmente engajados, A rosa do povo apresenta grande variedade temática e técnica; 2) Quase todos os poemas têm uma dimensão metafórica, apesar da linguagem aparentemente clara.
Com frequência, também nos surpreendemos com inesperadas associações de palavras, elipses, imagens surrealistas. Trata-se de poemas refinados, complexos e acessíveis somente a leitores com significativa nformação poética. Paradoxalmente – como notou Álvaro Lins – a obra em que CDA mais se aproxima de uma ideologia popular é, na verdade, dirigida apenas a uma aristocracia intelectual. 3) A rosa do povo representa, na poesia de Drummond, uma tensão entre a participação politica e adesão às utopias esquerdistas, de um lado, e a visão cética e desencantada, de outro lado.
Não devemos entender esta duplicidade (esperança versus pessimismo) como contraditória. Toda a obra do autor (incluindo-se aí a amplitude de assuntos da mesma) é marcada por uma visão caleidoscópica, polissêmica. A realidade, para ele, tem várias faces. Faces descontínuas, irregulares, opositivas. Te ssência humana 2 OF visão final. O fluxo desordenado da vida não permite uma única certeza, uma única convicção. Perceber a poesia de CDA como reflexo desta rica e quase caótica diversidade é o começo de seu entendimento. ) O poeta vale-se tanto do “estilo sublime” (padrão elevado da língua culta) quanto do “estilo mesclado” (linguagem elevada e linguagem coloquial). 5) Os versos, geralmente curtos das obras inaugurais, tornam-se mais longos. Há um predomino do verso livre (métrica irregular) e do verso branco (sem rimas). 6) Ainda em relação às obras anteriores, o humor quase esaparece, o coloquial é atenuado e um tom grave e solene passa a impregnar os versos. ) As inquietações sociais anunciadas em livros anteriores como José e Sentimento do mundo – ainda vagas e mais ou menos abstratas – ganham, em A rosa do povo, plena historicidade, referindo-se várias vezes ao cotidiano, quando não a acontecimentos concretos da década de 1940 TEMAS BÁSICOS Valendo-nos de óbvia smpl•ficação didática, podemos dividir os poemas de A rosa do povo em sete áreas temáticas(3). É claro que, dada à complexidade dos versos drummondianos, muitos desses poemas podem ser enquadrados em mais de um núcleo e assunto.
No entanto, a divisão abaixo corresponde a um esquema estabelecido pelo próprio escritor em sua Antologia poética: – a poesia social; – a reflexão existencial (o eu e o mundo); – a poesia sobre a própria poesia; – o passado; – o amor; – o cotidiano; – a celebração dos amigos; dos cinquenta e cinco poemas de A rosa do povo podem ser enquadrados nesta tendência na qual a angústia subjetiva do poeta transforma-se em engajamento e compromisso com a humanidade. De certa forma, é possível distinguir neles uma espécie de seqüência lógica que revela as mudanças de percepção do poeta face ao fenômeno social.
Este processo temática não é unívoco, sendo composto por mais ou menos quatro movimentos muito próximos e que, na sua totalidade, formam a mais elevada manifestação de poesia comprometida na história da literatura brasileira. Vamos encontrar então: – a culpa e a responsabilidade moral; – o registro puro e simples de uma ordem política injusta; – a passagem da náusea à perspectiva de uma nova sociedade (em termos concretos e em termos abstratos); – a celebração da nova ordem. 1. -A culpa e a responsabilidade moral A repulsa ao egocentrismo e a abertura em direção ? solidariedade estão representadas por dois poemas totalmente imbólicos e despidos de referências à historicidade e ao cotidiano: Carrego comigo e Movimento da espada. Carrego comigo Neste texto, – composto por vinte e três quartetos com versos metrificados de cinco sílabas (redondilha menor) – o poeta começa aludindo a um misterioso embrulho que porta consigo, sem, no entanto, identificar o seu conteúdo: há dezenas de anos há centenas de anos o pequeno embrulho. (… ) Não ouso entreabri-lo. “perder-me a mim próprio”. No desfecho do poema há a revelação de que o embrulho destrói a solidão e confere um sentido à liberdade de quem o carrega, porém o seu conteúdo ão é explicitamente referido. Cabe ao leitor resolver o enigma, mas não é muito dificil supor que o embrulho é o peso da consciência moral do poeta. 1. 2 – O registro da ordem política injusta Ainda que toda a sua poesia social submeta a ordem vigente a um inquérito implacável, há sempre nestes poemas a indicação do novo, ou pelo menos das lutas que indiv[duos, classes e povos travam para impugnar a injustiça do planeta.
No caso de O medo, entretanto, a esperança ou o enfrentamento não se delineiam e o resultado é um dos textos mais opressivos de toda a obra de CDA. Os versos irregulares, (embora um bom número deles tenha ete sílabas) não impedem a criação uma cadência grave e soturna, nascida da repetição exaustiva da palavra medo. No desenrolar das quinze estrofes do poema, essa palavra e aquilo que ela traduz no contexto da época (ditadura, prisão, tortura, guerra, massacres, etc. ) vão tecendo uma rede de tentáculos sobre os seres, impedindo-os de pensar, protestar e agir.
A primeira estrofe já é elucidativa desta impotência(5): Em verdade temos medo. Nascemos escuro. As existências são poucas: Carteiro, ditador, soldado. Nosso destino, incompleto. O poema prossegue misturando referências objetivas (“E fomos educados para o medo. ) a outras, mais metafóricas: (“Cheiramos flores de medo. / Vestimos panos de medo. “). Toda a ação humana parece pro ramada ara evidenciar o império do pânico (“Faremos casas de tijolos de medo, / (… ) s OF (… ) ruas só de medo e calma. ) Na sétima estrofe, insinua-se a possibilidade da rebelião: Assim nos criam burgueses. Nosso caminho: traçado. por que morrer em conjunto? E se todos nós vivêssemos? Porém, esta ânsia libertária não se torna consistente, esmagada pelo terror frio e insidioso que se introjecta nas almas das pessoas, a tal ponto que até mesmo os filhos herdarão a falta e coragem de seus pais e nada restará à humanidade senão o “baile do medo. “: Nossos filhos tão felizes… Fiéis herdeiros do medo, eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo Depois do mundo, as estrelas dançando o baile do medo. (5) Além da impugnação desta era de medo, CDA deixa transparecer no poema a sensação de culpa e de responsabilidade – que o acomete com frequência, como vimos – frente ao desarranjo social. no item 1. 1. 3 – A passagem da náusea à perspectiva de uma nova sociedade: Neste bloco, encontramos um significativo número de poemas. Eles refletem a transição de um clima acabrunhante no qual um indivíduo em crise e um sistema desolador se identificam – para uma atmosfera radiosa de esperança e afirmativa do novo.
Dentro desta ótica são escritos dois dos mais importantes poemas de A rosa do pov usea (ver análise sentido da destruição de todos os valores tradicionais, da morte de todos os deuses e crenças. A náusea decorre desta liberdade aterradora, próxima do absurdo. O homem, despojado de suas antigas certezas, vaga num universo de destroços, porém, ao mesmo tempo que o tédio e o desespero o ameaçam, este mesmo homem pode, na grande solidão em que se converteu ua vida, encontrar uma alternativa válida de existência individual e coletiva.
Nosso tempo Nos oito pequenos cantos que o compõem, nos versos irregulares, nos símbolos intrincados, nas imagens surrealistas (“Tempo de divisas, / tempo de gente cortada / e mãos viajando sem braços, / obscenos gestos avulsos! ) e nos instantâneos realistas – quase cinematográficos — da vida coisificada das massas urbanas, CDA elabora em Nosso tempo um “admirável afresco da alienação contemporânea”, no dizer do crítico José Guilherme Merquior. Há uma visível ambivalência no dístico que abre o poema: Este é tempo de partido, empo de homens partidos.
Por um lado, partido conecta-se com política, com opção ideológica da qual ninguém poderia se furtar no contexto radicalizado dos anos de 1940; por outro, significa o homem mutilado, danificado tanto pela guerra como pela cidade opressora que esmaga corpos e consciências. Na segunda estrofe, surge o poeta (expressando o coletivo), seguro da inutilidade de seus livros, viagens e visões falsas: “Em vão percorremos volumes, / viajamos e nos colorimos”. Surge também a rua, cheia de tensão pela perspectiva da hora da mudança e pelos sonhos de sobrevivência dos homens comuns.
A ordem burguesa esta em crise: “Meu nome é tumulto”, grita o poeta, que, simultaneamente na voragem de sua liberdade absurda, procura uma alte 70 poeta, que, simultaneamente, na voragem de sua liberdade absurda, procura uma alternativa: “Onde te ocultas, precária síntese? ‘ As palavras do homem revoltado querem explodir para impugnar este ‘tempo de muletas”, tempo de aleijões morais. Muitas pessoas, também elas vítimas do processo de mutilamento, guardam segredos que serviriam para consolidar uma revolta comum e estabelecer laços de companheirismo neste universo de solidão e egoísmo.
O poeta – numa vertiginosa numeração caótica – pede que elas se abram e contem o que sabem, invocando inclusive a fala de insetos e objetos: Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano, ó surdo mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco pessoas e coisas enigmáticas, contai, (… ) Tudo tão difícil depois que vos calastes… E muitos de vós nunca se abriram.
Após invocar a fala e o grito rebelde, o poeta reconhece no canto IV, que o “meio silêncio”, o “murmúrio” e a “palavra indireta” ão quase um imperativo de sobrevivência num tempo de ameaças, espreita e delações. Afinal, “o espião janta conosco”. Se até então as imagens do texto parecem vir da interioridade do poeta em sua relação agoniada com o mundo, a partir do canto IV elas adquirem autonomia e se independem do eu-lírico. São imagens que surpreendem o vazio e a coisificação da vida citadina, em quadros realistas e surrealistas de impressionante vigor poético.
Homens escravizados pela rotina, massacrados pela mediocridade de seus empregos burocráticos, Indiferentes aos horrores da sociedade industrial/capitalista, multidão de zumbis ups corpos pouco a pouco viram coisas na repe 8 70 industrial/capitalista, multidão de zumbis cups corpos pouco a pouco viram coisas na repetição exaustiva e alienada dos mesmos gestos: Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida, mais tarde será o de amor.
Seres e objetos se nivelam em um universo de vulgar materialismo. Como escravos desprovidos de esperanças, voltam para suas casas, imaginando que estão numa cidade (lugar humano), quando na verdade estão soterrados pelo caráter ínfimo de suas vidas quase vegetativas, onde até os muros (os delineamentos da realidade) se apagam, se esfumam nas ombras: Escuta a hora espandongada* da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem, roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa, homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem imaginam esperar qualquer coisa, e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se, últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa, já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Nas estrofes VI e VII, as imagens voltam a expressar a náusea e a revolta no poeta, ainda que de forma elíptica e metafórica, porém, na estrofe VIII todas as insinuações vagas e retorcidas ontra a ordem vigente são substituídas por uma declaração intensamente panfletária que fecha o poema(4): O poeta declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista e com suas palavras, intuições símbolos e outras armas promete ajudar soviético também construiu a sua multidão de trabalhadores robotizados e burocratas infelizes e que nenhuma formação industrial contemporânea, com suas grandes e assustadoras metrópoles, pode prescindir desses contingentes humanos.
Poesia social (simbólica/abstrata) Vários outros poemas inscrevem-se no motivo da transição a náusea e da alienação à consciência e à esperança. Porém, diferentemente dos anteriores, tanto a concretude do cotidiano quanto das alusões históricas objetivas diluem-se em inusitadas metáforas e símbolos. Constitui-se então uma espécie de poesia social de linguagem abstrata. Áporo* Observemos este estranho soneto de versos curtos e regulares (cinco sílabas): Um inseto cava cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape Que fazer, exausto, em pais bloqueado, enlace de noite raiz e minério? Eis que o labirinto (0h razão, mistério) presto* se desata: em verde, sozinha antieuclidiana* uma orquídea forma-se. 0 DF 70