Teologia
Ano IV, de Fora, julho – outubro/2010 ALGUNS APONTAMENTOS HISTÓRICOS E CRÍTICOS SOBRE A TEOLOGIA DA REVOLUÇÃO DE RICHARD SHAULL* Fábio Henrique de Abreu Bacharel em Teologia/CES-lTASA Mestre em Ciência da Religião/ PPCIR-UFJF Doutorando em Ciência da Religião/PPClR-UFJF Bolsista CAPES Introdução Que a autonomia da reflexão teológica protestante latino-americana seja uma característica particularmente recente na história do protestantismo aqui inserido, na medida em que seja poss[vel apontar dos discursos teológi em si, nenhuma novi autonomia desta teol partir da segunda me 8 Swipe nentp io à polifonia e missão, não e, e-se dizer que a volver, sobretudo, a .
Isso não equivale dizer, entretanto, que períodos anteriores não tenham assistido a uma produção e reflexão teológicas especificamente latino- americanas, ainda que de uma forma muito particular e não propriamente Este artigo é parte da pesquisa de doutoramento em produção no Programa de Pós-Graduaçào em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, intitulada Teologia e ética social no pensamento de Richard Shaun, sob a supervisão do prof. Dr. Zwinglio M. Dias. www. estudosibericos. com 5 Ano IV, NO 14, Juiz de Fora, julho – outubro/2010 considerar tal articulação como uma genuinamente teológica é, em diversos sentidos, parte de outra discussão um tanto mais ampla e, não por último, relevante.
Como corolário desta problemática tem-se que a própria dimensão conceitual da reflexão teológica permanece carente de elucidação. Se o que se caracteriza como discurso teológico diz respeito à práxis fundamentalista que tende a articular um conjunto de dados previamente estabelecidos e aplicá-los dedutivamente a qualquer situação e contexto, então a história da teologia protestante atino-americana é tão antiga quanto a história de inserção do protestantismo em tal continente. Tal caracterização, entretanto, não está isenta de sérias complicações teóricas e metodológicas. sso porque a teologia não pode ser considerada um discurso que nasce desenraizado, independente do contexto no qual está inserid02.
Toda teologia possui um locus específico ao qual deve responder, nao de forma independente de seu conteúdo e de seu proprium, numa forma de determinismo sociológico e auto- esvaziamento, mas, no dizer de paul Tillich, sendo a um só tempo ma tarefa apologética e querigmática3. Afirmar a dimensão contextual da reflexão teológica 2 3 José MÍGUEZ BONINO. Rostos do protestantismo latino- americano. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 101. Tal concepção, obviamente, está relacionada com aquilo que se tem denominado teologia contextual. Esse tipo de abordagem teológica evidencia que a tarefa da teologia cristã é “comunicar o evangelho em termos da realidade das culturas com as quais a igreja está envolvida”.
Como bem coloca John Pobee, contexto, neste sentido, “significa a interpenetração de sujeito e objeto, assinalando a disposição 48 neste sentido, “significa a Interpenetração de sujeito e objeto, assinalando a disposição e empenho de viver mais com o específico que com generalidades, mais com particulares que com os universais” Oohn S. POBEE. Teologia contextual. In: Nicholas LOSSKY; José MiGUEZ BONINO; John POBEE; Tom STRANSKY; Geoffrey WAINWRIGHT; Pauline WEBB. (Ed. ). Dicionário do movimento ecumênico. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 1051 Desta forma, a teologia contextual pode ser caracterizada como uma “declaração da relatividade na teologia”, o que não implica, necessariamente, a ausência de um conteúdo específico assÑ•el de anúncio e proclamação (relativismo). Paul Tillich afirma que a teologia não pode jamais se desvencilhar do “pólo chamado situação” se quiser permanecer teologia.
Para Tillich, a “situação à qual a teologia deve responder é a totalidade da auto-interpretação criativa do ser humano em um período determinado” (Paul TILLICH. Teologia sistemática. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 22). Neste sentido, a teologia deve, ao mesmo tempo, permanecer apologética e querigmática, i. e. , uma teologia que responde sem, entretanto, desprezar o conteúdo do seu anúncio. A forma de unir mensagem e situação é o que Paul Tillich caracteriza como “método de correlação”, entendido como a tentativa de relacionar às perguntas levantadas por um dado contexto as respostas possíveis existentes na mensagem e www. estudosibericos. om 6 Ano IV, N014, de Fora, julho – outubro/2010 não significa indicar que a elucubração teológica advinda de uma determinada realidade não tenha repercussão e utilidade para além de seus limites contextuais. Como ressalta Rudolf von Sinner, “também as teologias que se assumem 3 48 seus limites contextuais. Como ressalta Rudolfvon Sinner, “também as teologias que se assumem como contextuais têm a retensão de elaborar aspectos da fé que sejam relevantes além de seu próprio horizonte” 4. Não obstante, a repercussão para além das fronteiras contextuais só pode ser consequência de uma reflexão teológica profundamente preocupada em entender a sua própria realidade e o seu próprio contexto.
De acordo com a concepção de Tillich, a negatividade da proposta teológica fundamentalista reside na exclusão do contato com a “situação presente” por meio da repetição de respostas previamente estabelecidas “desde uma situação do passado”. A teologia, neste caso, não é pensada como um discurso que possul aízes em determinados contextos sociais e históricos, mas como um construto fechado e imutável. Ela não é mais algo do qual o homem participa, ou mesmo uma atividade que parta da reflexão humana, mas algo do qual este se aliena. Não se trata mais de uma reflexão em sentido estrito, mas da repetição de fórmulas fixas e, por natureza, nao relacionais.
Disso decorre, numa análise um tanto mais critica, embora em nada original, que a teologia protestante latinoamericana careceu, pelo menos até certo período, de uma profunda pobreza metodológica e epistemológica. Tal construto só pode ser considerado ropriamente teológico em seu sentido fraco, i. e. , desprezando- se a afirmativa nada incorreta de David Tracy: “teologias fundamentalistas e autoritárias, se propriamente consideradas, de forma alguma são teologias”5. 4 conteúdo evangélicos. Rudolfvon SINNER. Hermenêutica ecumênica. In: IDEM. Confian a e convivência: reflexões éticas e ecumênicas. Sáo Leopold 4 48 n: IDEM. Confiança e convivência: reflexões éticas e ecuménicas. São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 89. David TRACY. A imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo.
São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 36. 7 Ano IV, NO 14, Juiz de Fora, julho – outubro/2010 1. Relação entre individualismo religioso e ética social Tem sido comum entre os estudiosos do protestantismo de missão latinoamericano afirmar que a teologa protestante aqu produzida permaneceu menos relacionada com a tradição da Reforma que com a tradição missionária norte-americana. Em vista de tal vinculação com as missões e, conseqüentemente, com a ênfase conversionista subjacente a este tipo de práxis religiosa, a religiosidade e a teologia protestantes na América Latina acabaram sendo marcadas por um forte contorno individualista.
Essa caracterização da religiosidade e da teologia protestantes diz respeito à redução do social por meio da afirmação de uma ética voltada unicamente para a conversão do indivíduo. Em consequência, como aponta Rubem Alves, o protestantismo latino-americano nunca foi capaz de desenvolver, pelo menos espontaneamente, uma ética social. Sua produção neste campo foi muito mais uma resposta frente a questionamentos exógenos que um discurso próprio a sua esfera de pensamento e práxis. No que diz respeito ao protestantismo latino-americano, “só existe esperança de transformação para a sociedade na medida m que cada um dos seus membros se transformar. E isso significa, precisamente, co risto. Não se pode pensar s 8 ser pela mediação da verdadeira religião”6.
A preocupação com a dimensão social da fé é, assim, preterida, na medida em que a transformação da sociedade é entendida como conseqüência imediata da transformação dos indivíduos. De fato, é possível afirmar que a ênfase subjetivista da religiosidade do revival, enquanto raiz do impulso missionário, tenha contribuído para a manifestação de uma consciência protestante desinteressada na relação indivíduo-sociedade, fazendo com que o protestantismo qui Inserido terminasse caracterizado como um elemento exogeno e, nao Rubem ALVES. Religião e repressão. São Paulo: Loyola; Teológica, 2005, p. 266. Alves sugere que, sendo a salvação da alma a principal preocupação do protestantismo latino-americano, “a Igreja nao falou de ética social por sua iniciativa. Ela foi forçada a isto.
Ainda mais, para indicar a intenção apologética do seu falar. Em face de uma nova visão da fé, implícita na ética social nascente – visão herética —, era necessário reafirmar a ortodoxia. A Igreja falou de ética social a fim de desqualificar as pretensóes a ética social” (Rubem ALVES. Religião e repressão, p. 260261). wwm. estudosibericos. com 8 raras vezes, estranho à realidade do continente. Isso porque é uma característica do revival favorecer uma religiosidade marcadamente individualista, com forte ênfase na experiência subjetiva de conversão e na santificação, entendida como um radical distanciamento do mundo e dos assuntos a ele relacionados7.
Assim, a questão importante para o protestantismo de missão, como ressalta Rubem Alves, distancia- se de uma transformacao 6 48 ressalta Rubem Alves, distancia-se de uma transformação strutural da sociedade, uma vez que esta é considerada o resultado da soma dos indivíduos nela presentes. O problema estrutural nao é “esfera de sua competência, mas está sob o poder e a responsabilidade dos magistrados que Deus para isto estabeleceu”. A tarefa exclusiva da igreja é, desta forma, “transformar os corações” 8. A ênfase simultânea proporcionada pelo protestantismo latino-americano na subjetividade da experiência religiosa e no afastamento radical de seu contexto enquanto esfera ilegítima de preocupação eclesiástica foi ainda aguçada pelo vínculo estabelecido pelas missões entre eus discursos teológicos e o projeto liberal norte-americano para a América Latina.
Esse vínculo permaneceu uma das principais chaves epistemológicas de articulação histórica do protestantismo de missão latino-americano. Ser protestante significava, grosso modo, ser portador de um novo modelo de sociedade, em contraposição ao modelo da cristandade católica, designado como o leitmotiv do atraso da civilização latino- americana. Nessa tarefa de transformação da sociedade, a mediação da educação alcança um lugar imprescindível. Não foi por acaso que uma das estratégias utilizadas pelos missionários ara a transformação da sociedade latino-americana foi a criação de escolas e universidadesg. As sociedades missionárias que invadiam a América Latina 789 americano, p. 1. Rubem ALVES. Religião e repressão, p. 260. Foi no campo educacional, multo mais do que no nivel social ou mesmo politico, que o protestantismo encontrou as possibilidades mais reais para a viabilização de seu projeto liberal p 48 protestantismo encontrou as possibilidades mais reais para a viabilização de seu projeto liberal para a América Latina. Como sugere Rubem Alves, “faltando ao protestantismo incipiente massa humana que tomasse sobre seus ombros a causa da regeneração social, foi por meio das escolas e dos hospitais que se pretendeu atingir tal fim” (Rubem ALVES. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Loyola, 2004, p. 163).
Segundo Míguez Bonino, a ênfase na educação e na criação de escolas oferecia “uma mediação inobjetável para com o social sem obrigar a pronunciar-se sobre regimes políticos ou definições econômicas”, permitindo “reconciliar a ênfase ‘conversionista’ com a preocupação ética e a noção liberal de um desenvolvimento pessoal”, além de oferecer “um amplo campo de colaboração om as novas elites ilustradas da América Latina, obcecadas com a ‘redenção do povo’ mediante a educação” (José MíGUEZ BONINO. Rostos do protestantismo latino-americano, p. 19). 9 traziam juntamente com seu ímpeto religioso a tentativa de propagar as práticas e os valores religiosos da modernidade liberal, considerados inseparáveis do progresso econômico e da consolidação do liberalismo republicano. or isso mesmo a ênfase numa moral ascética de cunho puritano que exigia uma abstinência do álcool, do tabaco e dos jogos de azar, i. e. , uma moral centrada no individuo como ator religioso e social, moral sta que correspondia aos anseios liberais dos setores sociais latino-americanos em transiçã010. Se, por um lado, a ênfase na experiência subjetiva da conversão levou ao obscurecimento da dimensão política da fé, por outro lado, o vinculo li 8 48 levou ao obscurecimento da dimensão política da fé, por outro lado, o vinculo liberal das missões contribuiu para uma tentativa de transformação social através da mediação da religião protestante, inspirada no modelo social norte-americano.
Diante disso, é até mesmo possivel afirmar, juntamente com Miguez Bonina, que o protestantismo missionário possuía, de ato, “um interesse social genuíno”, baseado na caridade e na ajuda mútua, faltando-lhe, porém, uma “perspectiva estrutural e politica”, com exceção das situações que diziam respeito “? defesa de sua liberdade e à luta contra as discriminações”. Assim, o protestantismo de missão latino-americano tende a ser “democrático e liberal” sem, entretanto, tornar tal opção parte integrante de sua fé e de sua piedade 11. Rubem Alves afirma que para o pensamento protestante latino-americano a causa real das crises sociais diz respeito à esfera moral e espiritual, uma vez que é a corrupção da esfera espiritual que provoca as rises sociais. ? principalmente neste sentido que deve ser visto o confronto entre as missões protestantes e o romano-catolicismo, pois, em ultima análise, para o protestantismo a grande culpada pela pobreza, atraso e injustiças sociais era a igreja romanal 2. A consequência deste embate foi a descaracterização do próprio protestantismo, transformando-o num anti-catolicismo. Em nome de seu vínculo liberal, renuncia à cultura latino-americana e se propõe a tarefa de transformação da sociedade através da religião. 10 1112 Jean-Pierre BASTIAN. Protestantismos y modernidad atinoamericana: historia de unas minorias religiosas activas en América Latina. México: Bondo de Cultura Económica, 1994, p. 106-111. José MIGUEZ BONINO. activas en América Latina.
México: Fondo de Cultura Económica, 1994, p. 106-111. José MíGlJEZ BONINO. Rostos do protestantismo latino-americano, p. 41 . Rubem ALVES. Religião e repressão, p. 267. wvwv. estudosibericos. com 2. A caminho de uma nova teologia Foi a tomada de consciência desse vínculo político-econômico liberal por diversos teóricos e líderes do protestantismo aqui inserido que tornou possível, de diversas maneiras e por diferentes meios, a tentativa de laboração de uma teologia protestante latino-americana autônoma e original, a qual, por seu turno, veio a sign’ficar uma ruptura epistemológica e uma guinada programática na articulação da teologia protestante no continente.
Através de uma releitura de cunho secular dos ideais da Reforma como uma crítica ao vinculo liberal por parte das igrejas protestantes na América Latina, bem como uma tentativa de aculturação à realidade continental, setores do protestantismo latinoamericano, em grande parte marginais às suas instituições de origem, contribuíram de maneira decisiva para a criação de ma teologia latino-americana engajada e comprometida com os interesses sociais e politico-econômicos do continente. Foi, sobretudo, na militância ecumênica que esses setores marginais atuaram, cooperando para a conscientização de camadas da população engajadas em uma militância política mais expressiva. Isso porque o Movimento Ecumênico na América Latina significou menos uma tentativa de aproximação institucional entre os diversos corpos eclesiásticos cristãos que a plataforma de inserção de setores das igrejas nas lutas políticas e ideológicas que tomavam corpo no cenário olítico 0 DF 48