Análise de conteúdo e análise do discurso

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Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e afastamentos na de uma trajetória Décio Rocha Bruno Deusdará Introdução A história do conhecimento não pode ser contada em uma trajetória linear, como algo que avança gradualmente, dimensionando a relação homem-mundo por intermédio do mero acúmulo progressivo de saberes. Com efeito, a constituição de novos paradigmas científicos impõe uma outra dinâmica, qualquer que seja o OF27 De modo geral, as tr fo passado as ciências d onst vez de um moviment tange às ciências hu nos situemos. or que têm lar des e rupturas, em abretudo no que dá não é a mera ubstituição de um caminho enganoso por caminhos promissores de novas verdades. Trata-se antes de novas perspectivas, que vêm participar da cena, de opções teóricas diversas daquela em relação à qual se produz uma ruptura ou do desejo de redimensionar o objeto de estudo.

Dito isto, é necessário observar que “o gesto inaugural” da chamada Análise do Discurso foi empreendido neste duplo sentido: a construção de um outro olhar sobre as práticas linguageiras e o redimensionamento do objeto de análise A trajetória da Análise do Discurso, perspectiva não previamente inscrita no campo do saber 1 , passa ela necessária consolidação das opções teóricometodológicas que vem sendo capaz de realizar, instituindo no novo espaço epistemológico produzido no âmbito dos estudos -k Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1997, 3a ed). Esta expressão é retomada de Maingueneau (1997: 9), opção que desde já vem explicitar a posição que assumimos diante da diversidade de enfoques que se alinham sob a denominação “Análise do discurso”. ALÉA VOLUME 7 NÚMERO 2 JULHO – DEZEMBRO 2005 p. 305-322 305 da linguagem um processo de rupturas e continuidades em relação a uma certa tradiçã02, o que exlge reiterados momentos e legitimação. Objetivo Problematizar esses momentos de legitimação de um dado quadro teórico, ressituando-os à luz dos atuais desafios de uma perspectiva discursiva, é uma questão central aqui.

Pretendese, com isso, (re)construir – parcialmente, é claro – a trajetória histórica da Análise do Discurso, observando-se que aspectos teórico-metodológlcos da Análise de Conteúdo foram postos em questão pela proposta fundadora de Pêcheux. Sendo assim, nosso objetivo geral neste trabalho é, ao tentar (re)construir esse diálogo ou contraposição, sistematizar minimamente uma eflexão acerca das seguintes questões: i) a que insuficiências da Análise de Conteúdo se procurou responder com uma nova perspectiva discursiva? i) em que sentido a abordagem da Análise de Conteúdo teria contribuido para as práticas hoje desenvolvidas pela Análise do Discurso? Metodologia (Bardin, Laurence. L’analyse de contenu. Paris: PUF 1995; , ncias em Análise do Maingueneau, Dominique. Análise do Discurso, respectivamente, as de Laurence Bardin e Dominique Maingueneau*. Com base nas obras selecionadas, realizamos uma pesquisa bibliográfica que teve o mérito de xpandir a rede de sentidos em cada uma das perspectivas aqui confrontadas com os aspectos identificados como relevantes em cada uma das orientações teorico-metodológicas em discussão.

Algumas questões que surgiram no percurso nos indicaram desdobramentos em outras áreas do conhecimento, como a psicologia social, tornando essa experiência muito mais enriquecedora do que havíamos imaginado no início de nosso trabalho. Como caminho metodológico, a pesquisa bibliográfica era o passo inicialmente projetado para o levantamento de obras de referência em Análise de Conteúdo. Cumprida essa etapa, e de A tradição a que ora nos referimos diz respeito aos trabalhos em Análise de Conteúdo.

Sobre as rupturas e continuidades relativas a tal tradição, remetemos o leitor a “Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: o linguístico e seu entorno”, nosso artigo aprovado para publicação na revista D. E. L. T. A, com previsão de publicação para o primeiro semestre de 2006. 306 ALEA VOLUME 7 NÚMERO 2 JULHO – DEZEMBRO 2005 posse de uma listagem minimamente diversa de trabalhos em Análise de Conteúdo, estabelecemos leituras que nos seriam de interesse em um primeiro momento, optando logo em seguida or Análise de conteúdo, de Laurence Bardin.

O interesse da obra escolhida pode ser ilustrado pelo que está na contracapa da edição consultada: “Laurence Bardln, professora-assistente de psicologia na Universidade de Paris V, aplicou as técnicas da Análise de Conteúdo na investigação psicossociológica e no estud PAGF V, aplicou as técnicas da Análise de Conteúdo na investigação psicossociológica e no estudo das comunicações de massa.

Este livro procura ser um manual claro, concreto e operacional desse método de investigação, que pode ser utilizado por psicólogos e ociólogos, qualquer que seja a sua especialidade ou finalidade, e por psicanalistas, historiadores, políticos, jornalistas etc. “. Mais que essa descrição, todavia, o livro atendia a dois requisitos que nos pareciam de grande importância na etapa inicial de pesquisa: de um lado, traçava um panorama do suporte teórico e de metodologias recorrentes em Análise de Conteúdo; de outro, apresentava exemplos práticos de trabalhos levados a cabo segundo a ótica sustentada por esse tipo de análise.

Antecedentes do surgimento da Análise do Discurso De forma bastante sintética, pode-se situar o surgimento a chamada Análise do Discurso no fim dos anos 1960, em decorrência de insuficiências de uma análise de texto que se vinha praticando e que se pautava prioritariamente por uma visão conteudista, característica central das práticas de leitura que localizamos nos estudos em Análise de Conteúdo.

De um lado, imperava nas ciências humanas e sociais um contexto marcadamente orientado pelos desenvolvmentos de uma dada psicologia social em sua versão behaviorista – perspectiva desenvolvida nos Estados Unidos a partir da primeira metade do século XX; de outro, era claro o predomínio de uma concepção e linguagem influenciada pelos esquemas “informacionais” de comunicação, principalmente aquele elaborado por Roman Jakobson*.

Segundo a articulação desses elementos que caracterizaram a abordagem da Análise de Conteúdo, a produção de sentid articulação desses elementos que caracterizaram a abordagem da Análise de Conteúdo, a produção de sentido se refere apenas a uma realidade dada a priori, ou seja, o objetivo do tipo de análise preconizado pela Análise de Conteúdo é alcançar uma pretensa significação profunda, um sentido estável, conferido pelo locutor no próprio ato de produção do texto. Jakobson, Roman.

Lingüística e comunicação. Sâo Paulo: Cultrix, 1973). Décio Rocha e Bruno Deus-dará • ANÁLISE DE CONTEÚDO E ANÁLISE DO DISCURSO 307 Já a problemática da discursividade surgida com as contribuições da Análise do Discurso propõe o entendimento de um plano discursivo que articula linguagem e sociedade, entremeadas pelo contexto ideológico. A Análise do Discurso, portanto, pretende não instituir uma “nova linguística”, mas consolidar uma alternativa de análise, mesmo que marginal, à perspectiva ‘tradicional”.

Um alargamento teórico, uma possibilidade outra, riginada de um olhar diferenciado que se lança sobre as práticas linguageiras. Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e afastamentos Sigamos relacionando os aspectos teórico-metodológicos que foram explicitados em nossas análises, confrontando-os no que tange à construção da trajetória de continuidades e rupturas entre a Análise do Discurso e a Análise de Conteúdo. Os objetivos da Análise de Conteúdo Procurar compreender os PAGF s OF estudos desenvolvidos “campo das ciências”.

Optar por caminhos que garantam sua legitimação nos conduz à reflexão sobre um pressuposto: uma ada concepção de ciência, herdeira da tradição iluminista, dá sustentação às opções feitas pela Análise de Conteúdo. Sem pretender, a princípio, configurar-se como doutrinal ou normativa, a Análise de Conteúdo se define como um “conjunto de técnicas de análise das comunicações”* que aposta grandemente no rigor do método como forma de não se perder na heterogeneidade de seu objeto.

Nascida de uma longa tradição de abordagem de textos, essa prática interpretativa se destaca, a partir do início do século XX, pela preocupação com recursos metodológicos que validem suas descobertas. Na verdade, trata-se da sistematização, da tentativa de confenr maior objetividade a uma atitude que conta com exemplos dispersos, mas variados, de pesquisa com textos. À guisa de ilustração, vejamos este fragmento: “[como exemplo de Análise de Conteúdo prematura temos] a pesquisa de autenticidade (Bardin, Laurence.

L’analyse de contenu. Ob. cit: 31) 308 ALEA VOLUME 7 NUMERO 2 JULHO – DEZEMBRO 2005 feita na Suécia por volta de 1640 sobre os hinos religiosos. Com o objetivo de saber se esses hinos, em número de noventa, podiam ter efeitos nefastos sobre os Luteranos, foi efetuada uma nálise dos diferentes temas religiosos, de seus valores e de suas modalidades de apanção (favorável ou desfavorável), bem como de sua complexidade estilística”*.

Embora a inovação da Análise de Conteúdo tenha consistido em contribuir com procedimentos “científicos” de legitimação de uma dada técnica de leitura, há algo que permaneceu ao lon o do tempo: o objetivo de atingir dada técnica de leitura, há algo que permaneceu ao longo do tempo: o objetivo de atingir uma “significação profunda” dos textos: “O que é passível de interpretação? Mensagens obscuras que exigem uma interpretação, mensagens com duplo sentido, uja significação profunda (a que importa aqui) só pode surgir depois de uma observação cuidadosa ou de uma intuição carismática”*.

Nesse movimento entre a heterogeneidade do objeto e o rigor metodológico é que se percebe em que modelo de ciência se funda a Análise de Conteúdo: um modelo duro, rígido, de corte positivista, herdeiro, como dissemos, de um ideal preconizado pelo Iluminismo. Centra-se, sobretudo, na crença de que a “neutralidade” do método seria a garantia de obtenção de resultados mais precisos. Essa busca se caracteriza inicialmente pelo equívoco clássico de associar análise uantitativa e “objetividade”, algo que pode ser observado no grande número de estudos pautados por essa orientação.

Mais que isso, há sempre um patrulhamento no sentido de não só preservar a objetividade, mas também afastar qualquer indício de “subjetividade”3 que possa invalidar a análise. Aproximar- se da neutralidade equivale, nesses termos, a sustentar-se como ciência. O analista seria, portanto, um detetive munido de instrumentos de precisão para atingir a significação profunda dos textos. O rigor, portanto, é o fundamento das contribuições oferecidas pela Análise de Conteúdo, uma vez que, por ntermédio dessa característica, afirma-se a possibilidade de ultrapassar as (:14-5). :14-5) PAGF 7 compreendida a partir do referencial preconizado pelos estudos em Análise de Conteúdo: explicitação de qualquer forma de implicação do pesquisador com seu objeto de investigação. Décio Rocha e Bruno Deusdará • ANÁLISE DE CONTEÚDO E 309 t: 29) c: 29) “aparências”, os níveis mais superficiais do texto, residindo nesse processo de descoberta a desconfiança em relação aos planos subjetivo e ideológico, considerados elementos de deturpação da técnica.

A explicitação de um ponto de vista, qualquer que eja a ótica explicitada, desvirtua os rumos da análise, ou seja, a ideologia é vista como o descaminho da descoberta científica. “Estes dois pólos, desejo de rigor e necessidade de descobrir, de adivinhar, de ir além das aparências, expressam as linhas de força do seu desenvolvimento histórico e o aperfeiçoamento que, atualmente, ainda a f e duas tendências”*. completam-se duas orientações: a verificação prudente ou a interpretação brilhante”*.

Chegamos assim à principal questão referente aos objetivos perseguidos pela Análise de Conteúdo: a ultrapassagem da incerteza e o enriquecimento da leitura. O rimeiro deles é descrito de acordo com os seguintes aspectos: “o que eu julgo ver na mensagem estará lé efetivamente contido, podendo esta ‘visão’ muito pessoal ser partilhada por outros? “*. A caracterização do segundo, por sua vez, não se distancia muito do já visto: “se um olhar imediato, espontâneo, já é fecundo, não poderá uma leitura atenta aumentar a produtividade e a pertinência?

Pela descoberta de conteúdos e de estruturas que confirmam (ou infirmam) o que se procura demonstrar a propósito das mensagens, ou pelo esclarecimento de elementos de significações susceptíveis de conduzir a uma descrição de ecanismos de que a priori não detínhamos a compreensão”* Nessa formulação, convergem, em grande medida, o objetivo a que se propõe a Análise de Conteúdo e a concepção de ciência sobre a qual ela se alicerça.

Aos estudos científicos caberia investigar e descobrir aquilo que a espontaneidade dos “comuns”, dos “desprovidos de técnicas seguras de leitura”, não 310 é capaz de encontrar. Sob os auspícios da ciência, seria poss[vel apreender a realidade oculta: existiria uma verdade a ser recuperada por intermédio da ciência. Nesse sentido, a concepção de linguagem em jogo reproduz inequivocamente um rojeto de representação de um real pré-construído.

Opções metodológicas em Análise de Conteúdo Neste item, pretendemos compreender, com base em um exemplo prático de anál de Conteúdo exemplo prático de análise nos moldes da Análise de Conteúdo, quais são as preocupações mais relevantes que podem orientar uma pesquisa de acordo com essa perspectiva. Julgamos que, no exemplo apresentado, evidenciam-se opções metodológicas de análise que dão corpo a tal modelo epistemológico, tornando- se possível, desse modo, identificar as concepções subjacentes às etapas da pesquisa e aos resultados a que se pretende hegar.

Assim, a fim de explicitar as posições apresentadas como características de uma abordagem em Análise de Conteúdo, retomamos o exemplo tido como clássico e constante em Bardin, a saber, a análise da simbologla do automóvel, decorrente do seguinte objetivo de pesquisa: “examinar as respostas a um inquérito que explora as relações psicológicas que o indivíduo mantém com o Diante desse objetivo de pesquisa, são elaboradas duas perguntas, apresentadas como questões abertas, cujas respostas serão submetidas à análise. As perguntas são estas: “1) A que é, geralmente, comparado um automóvel? ) Se o seu automóvel lhe pudesse falar, o que é que lhe diria? “*. Com base no exposto, podemos fazer algumas observações inlciais a respeito de uma certa fundamentação que subjaz ? análise pretendida. A primeira se refere à idéia segundo a qual o texto das respostas dadas pelos entrevistados às perguntas formuladas consistiria em uma superfície a ser construída pelo pesquisador, da qual emergiriam “qualidades psicológicas” do entrevistado em relação ao automóvel. Com isso, vê-se uma concepção de linguagem como representação de uma realidade a priori: a linguagem seria apenas um veiculo de

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