Caçador de pipas
AS INTERFACES DA NARRATIVA: O CAÇADOR DE PIPAS Adriana Rõhrig 1 Resumo: Este artigo visa a discutir a repercussão da obra O caçador de Pipas, de Khaled Housseinl, escrita após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, quando o Afeganistão passou a fazer parte da mídia – e da vida — dos estadunidenses. Entende-se que tal obra justifica a Invasão a um país estrangeiro, pautando-se nas diferenças de governos, culturas e tecnologias entre país invasor e invadido.
Tais discrepâncias dizem respeito ao esfacelamento das relações interpessoais, ao crescente individualismo e, por conta disso, ? despreocupação com o bem comum e, por isso, à falência de corporações que representem uma coletividade. Além disso, mesmo as inst- suas funções primeir particularizados, per vontade subjetiva e u globais, a questão pa PACE ar 18 e desviando das e segurança r unificador da de problemas ante. ? sob esse viés que o sociólogo polon s Zygmunt Bauman, por exemplo, em sua obra Tempos Líquidos, ao tratar do medo que assola a sociedade mundial na contemporaneidade e o círculo vicioso que se fecha com as ações pelo medo inspiradas, aborda não só as consequências do episódio de 11 de setembro, mas as suas ausas. Palavras-chave: Literatura contemporânea. Sociedade contemporânea. Conflitos internacionais.
Abstract: This article aims to discuss the repercussion of the book “O caçador de pipas”, written by Khaled Housseini after September Swipe to nex: page September 1 Ith, 2001 terrorists attacks, when Afghanistan has become part of media – and life – of North American people. It is understood this book justifies a foreign country invasion, based on polltlcal, governmental, cultural and technological differences between invaders and invaded.
Such discrepancies are related to the deterioration of interpersonal relationships, rowing individualism, and as a consequence, the common good is neglected taking to failure associations that represent the collectiveness. Besides, even the basic institutions are missing their elementary functions, offering private protection and security, Iosing Sight of the unifying character of subjective and universal will.
Dealing with global issues, these questions seems to be even more alarming. It is under this perspective the pollsh Sociologist Zygmunt Bauman in his book “Tempos Líquidos”, for example, points out the fear that scare the world society nowadays as a vicious circle, closed on actions inspired by fear. He points out not only the consequences of September 1 1 th episode, but also its causes. UFSM 84 Signos, ano 31, n. 1, p. 83-92, 2010 Key-words: Contemporary Literature. Contemporary Society. International Conflicts. Indrodução Percebemos no mundo contemporâneo o esfacelamento das relações interpessoais, o crescente indlvidualismo e, por conta disso, notamos que as preocupações com o bem comum estão minguando, à beira do desaparecimento. or isso, o que vemos é a falência de corporações que representam uma coletividade, tais como os sindicatos e as associações; e mesmo as instituições basilares, ais como 18 como os sindicatos e as associações; e mesmo as instituições basilares, tais como o Estado, estão se desviando das suas funções primeiras, oferecendo proteção e segurança particularizados, perdendo de vista seu caráter unificador da vontade subjetiva e universal, tal como concebia Hegel. ara este pensador, “o que conta em um Estado é a ação realizada de acordo com uma vontade comum e adotando os objetivos universais” (HEGEL 2001, p. 88). Paradoxalmente, o mundo passa a exigir cada vez mais consciência da alteridade, já que, de acordo com o estudioso Edward Said, “o mundo em uma interdependência efetiva entre as partes que não deixa nenhuma possibilidade genuína de isolamento” (SAID, 2007, p. 25). Apesar disso, na literatura ocidental, que é a que minimamente conhecemos e reconhecemos, tem-se construído representações em que subjetividade e relações interpessoais parecem degradadas.
O Caçador de Pipas configura-se em um exemplo gritante da não-percepção e desvalorização do Outro enquanto sujeito. Mais do que isso, trata-se de uma premeditada supervalorização do Eu em franco detrimento àquele Outro. Poderemos verificar no decorrer desta breve reflexão que o Eu m questão diz respeito aos Estados Unidos e o Outro é tudo ou todo(s) que possa(m) ameaçar a integridade desse Eu, dentre eles o Afeganistão, as forças soviéticas e o Talibã. 0 Caçador de Pipas — para quem e para quê? Edward Said, em sua obra intitulada Orientalismo, considera que “hoje em dia as livrarias norte-americanas estão lotadas de impressos de má qualidade ostentando manchetes alarmistas sobre o islã e o terror, o islã dissecado, a ameaça árabe e muçu qualidade ostentando manchetes alarmistas sobre o islã e o terror, o islã dissecado, a ameaça árabe e muçulmana” (SAID, p. 1 6, 2007).
A esses impressos, apesar da qualidade ser um pouco superior à referida por Said, podemos agregar O Caçador de Pipas, de Khaled Housseini, obra que julgamos merecer um olhar acurado, seja pela repercussão que teve desde 2005 (quando chegou às livrarias) até início de 2009 (quando o filme baseado nesse livro foi amplamente divulgado em quase todo o mundo), seja pela visão de mundo por ele veiculada. Cabe destacar que ambas as obras, tanto a literária quanto a cinematográfica, vêm causando emoções diversas em leitores e expectadores das mais variadas culturas, salvo algumas exceções pontuais como o
Afeganistão, onde o livro é proibido. Também nos parece salutar esclarecer que se trata de um livro norteamericano escrito para norte-americanos, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, quando o Afeganistão passou a fazer parte da midia – e da vida – dos estadunidenses. Pode parecer óbvio que tenham aparecido escritores Signos, ano 31 , n. 1, p. 83-92, 2010 85 justificando a invasão a um país estrangeiro, mostrando as diferenças de governos, culturas e tecnologias entre país invasor e invadido, mas cabe frisar que, entre muitos outros, O Caçador de Pipas parece cumprir esse papel.
A narrativa representa a vida de um garoto que passa a infância no Afeganistão e que depois se refugia nos Estados Unidos, estabelecendo comparações entre o tipo de vida em um e outro país. Mesmo que aceitássemos que as comparações fossem inevitáveis, vale esclarecer que o protagonist aceitassemos que as comparações fossem inevitáveis, vale esclarecer que o protagonista vai além da mera comparação e afirma categoricamente que sua nova pátria é melhor que a anterior.
Não obstante, a opinião da personagem Amir não se constitui em nada perto do que se poderia denominar nanimidade, pois ele representa o grupo étnico Pashtun – tribo (é verdade) dominante, mas abarcando apenas 42% da população – e mostra, justamente, a visão pashtun do Afeganistão. Os hazaras, grupo que compreende aproximadamente 20% da população total do Afeganistão, aparece como uma etnia subalterna e inferior.
Isso nos remete à discussão do conceito de nação enquanto unidade de Bhabha, em que ele desnaturaliza o conceito de pertencimento a uma nação e a própria artificialidade do conceito de nação. Bhabha entende a nação como produto de uma estratégia narrativa que reúne e procura homogeneizar ovos diferentes. Isso parece se acomodar na representação O Caçador de Pipas e marca a constituição de qualquer nação, seja ela oriental ou ocidental, e é perceptível, basta que a olhemos com a devida atenção.
Outro aspecto ao qual vale a pena chamar a atenção é que o protagonista (assim como o próprio autor da obra) fugiu do Afeganistão quando este foi invadido em 1980 pelos soviéticos. Dessa forma, a sua ideia sobre o Afeganistão, a vida e dificuldades daqueles que lá permaneceram (muitas vezes distorcida) é a de um observador externo e distante, e não de uem efetivamente viveu aquela realidade. Por isso, acreditamos não representar uma possível realidade, mas somente um ponto de vista, o que faz da narrativa uma obra monológica.
Isto é, realidade, mas somente um ponto de vista, o que faz da narrativa uma obra monológica. Isto é, a visão de mundo que se mostra é desprovida do efetivo diálogo entre culturas, mais especificamente com o Oriente, embora tenha essa aparência, prevalecendo a ótica ocidental do Afeganistão e a exaltação dos EUA. A obra seria muito mais válida se apresentasse outras perspectivas e não somente uma, deixando que o leitor reenchesse os vazios e pudesse assim chegar as suas próprias conclusões, sem a imposição da narrativa de uma só visão de mundo.
Como já dissemos, a exaltação dos Estados Unidos se dá na obra principalmente através dos olhos de Amir, o protagonista, nas suas falas e no contexto narrativo. Mas nas enunciações de Baba (o pai de Amr), podemos notar um contraponto, como é possível observar na seguinte fala: Só existem três povos nesse mundo que são homens de verdade, Amir – dizia ele. E os contava nos dedos: – os americanos, esses heróis fanfarrões; os britânicos e os israelenses. Todo o resto – e, ao dizer isso, costumava fazer um gesto com a mão, acompanhado de um “pfff” – não passa de velhotas mexenqueiras.
HOUSSEINI, 2005, p. 88). 86 É perceptível certa ironia por parte de Baba ao referir-se aos americanos, uma vez que os adjetiva de fanfarrões, já que forma um paradoxo: herois são homens de coragem, notáveis por seus feitos e que se arriscam em benefício de outrem; em contrapartida, fanfarrões são indivíduos que alardeiam coragem que não possuem. Talvez resida nessa personagem a única resistência aos Estados Unidos notável na obra. Outros personagens, ape PAGF 18 ersonagem a única resistência aos Estados Unidos notável na obra.
Outros personagens, apesar de não residentes nos EUA, também servem à função de demonstrar a superioridade daquele pais, como Rahim Khan, amigo de Amir residente em Cabul: – Pelo que vejo, os Estados Unidos infundiram em você o otimismo que fez deles um grande pais. Isso é ótimo. Nós, os afegãos, somos um povo melancólico, não somos? Quase sempre ficamos chafurdando em ghamkhori e autopiedade. Damo-nos por vencidos diante das perdas, do sofrimento; aceitamos tudo isso como um fato da vida ou chegamos até a considerá-lo algo ecessário (HOISSEINI, 2005, p. 137).
Não bastasse isso, a obra de Housseini representa, também de forma bastante tendenciosa e unilateral, a instalação do Talibã no Afeganistão, talvez com a intenção de ir já convencendo o leitor do caráter maléfico dessa milícia e preparando-o para o desfecho, quando o Talibã será banido. Isso fica claro na seguinte passagem: Todo o dinheiro que baba gastou, todas as noites em que suou debruçado sobre as plantas baixas, todas as visitas ao canteiro de obras para se assegurar de que cada tijolo, cada viga, cada pedra estavam sendo postos direito… Danos colaterais – disse Rahim Khan. Não queira saber, Amir jan, o que foi circular pelos destroços do orfanato. Havia pedaços de corpos de crianças… – Então o Talibã chegou… – Eles foram considerados heróis – retomou ele. – Finalmente a paz. – É. A esperança é uma coisa estranha. Finalmente a paz. Mas a que preço? (HOUSSEINI, 2005, p. 136). Pelo exposto, acreditamos que o caráter sectário desta obra se afirma, bem como o seu público-alvo, afirma, bem como o seu público-alvo, os EUA, ao qual esta atingiu de maneira precisa, já que, conforme a Editora Nova Fronteira, oram vendidos mais de 2 milhões de exemplares só nos EUA.
Além disso, a obra permaneceu mais de um ano na lista dos mais vendidos do New York Times e da Publishers Weekly; foi eleita “O melhor livro do ano” pelo San Francisco Chronicle em 2008; foi selecionada entre os “Dez melhores livros do ano” pelo Entertainment Weekly; no mesmo ano, destacado como “Um retrato tocante do Afeganistão moderno” e reconhecido como “livro notável” pela American Library Association; entre outros efusivos elogios, vindos de praticamente todos os lados do globo terrestre. algumas nuances obscurecldas? Tanta aclamação a uma percepção, no minino unívoca, da realidade, que apresenta e distorce aspectos de um mundo que é – para o Ocidente – axiologicamente 87 desconhecido, causa desconfiança. Isto porque o livro é considerado, por milhões de pessoas, um típico best-seller, quase inofensivo, sobre valores como honra, amizade e perdão; e o seria, não fosse a visão, um pouco velada talvez, que permeia o livro e se intensifica no final.
Ou seja, um dos livros mais vendidos, lidos e aplaudidos no planeta nos últimos anos enuncia sem pudor uma terra bastante desconhecida no mundo cidental, passando uma visão caótica do Afeganistão e um olhar violento e satânico do Talibã. Em contrapartida, os Estados Unidos são venerados e as intenções de Bush são apresentadas como boas, positivas e, “finalmente”, compr venerados e as intenções de Bush são apresentadas como boas, positivas e, “finalmente”, compreendidas. Uma bela e poética justificativa de invasão, nem parece uma guerra…
Nesse sentido, o desfecho de O Caçador de Pipas, com a queda das torres gêmeas e as ações/reações subsequentes, tem um pape fundamental e remete diretamente às considerações de Said obre esse fenômeno, que na verdade encobre o sofrimento e a destruição produzidos: Na demonização de um inimigo desconhecido, em relação ao qual a etiqueta “terrorista’ serve ao propósito geral de manter as pessoas mobilizadas e enraivecidas, as imagens da midia atraem atenção excessiva e podem ser exploradas em épocas de crise e insegurança do tipo produzido pós Onze de Setembro (SAIO, 2007, p. 2). Em relação a esse “inimigo desconhecido”, Said (2007) denuncia a falta de uma postura ética e humanista do Ocidente em relação ao Oriente em várias dimensões: na humana ao afirmar que se perdeu o sentido da densidade e da interdependência da vida humana”, apontando assim para o processo de desumanização; bem como observa que isso se dá em âmbito coletivo pela hegemonia cultural e dominação política exercida pelo Ocidente.
A dominação política se justifica pela força, já que, como O Caçador de Pipas faz questão de representar, “afinal de contas, diz o coro, a força é a única linguagem que aquela gente entende” (SAID, 2007, p. 17). Não obstante, parece não se parar para refletir que o desconhecimento da cultura e, rincipalmente, da língua acaba por mistificá-las e impossibilita o desenvolvimento da consciência de que o Outro é sujeito, o que bloqueia qualquer possi o desenvolvimento da consciência de que o Outro é sujeito, o que bloqueia qualquer possibilidade de humanização dessa alteridade.
Seguindo a reflexão, no que tange à queda das Torres, vale reproduzir o fragmento da obra: Em uma manhã de terça-feira, em setembro passado, as Torres Gêmeas vieram abaixo e, da noite para o dia, o mundo mudou. De repente, a bandeira dos Estados Unidos estava por toda parte, as antenas dos táxis amarelos que circulavam pelo trânsito da cidade, na lapela dos pedestres que andavam pelas estradas em fluxo constante, até mesmo nos gorros imundos dos mendigos de San Francisco (Housseini, 2005, p. 238). ? curioso nessa passagem o narrador afirmar que o mundo mudou, relatando que a bandeira dos EUA estava por toda a parte, porém observamos nesse fragmento uma alusão localizada, em que o ponto geográfico mais distante é San Francisco, como se o mundo todo se resumisse àquele país. A distância maior que, forçosamente, se encolhe na narrativa reside o fato de as bandeiras dos EUA estarem até nos gorros imundos dos mendigos, levando-nos a considerar a hipótese 88 de que, por pior que fosse a situação econômica desses “cidadãos” americanos, naquele momento o esp[rito de unidade nacional era mais forte.
Outro trecho que chama muito a atenção é o imediatamente subsequente, que narra os ataques dos EUA após a queda das Torres e a consequente saída do Talibã do Afeganistão. “Logo depois dos ataques, os Estados Unidos bombardearam o Afeganistão, a Aliança do Norte entrou no pais e o Talibã bateu em retirada, correndo como ratos para se esconder nas cavernas