Farmacogenetica

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FARMACOGENÉTICA Farma A gené As bulas dos remédios costumam indicar as doses a serem administradas aos doentes para alcançar os efeitos desejados, mas nem sempre as coisas acontecem da forma prevista. Nas últimas décadas, estudos científicos têm revelado que os indivíduos respondem de modos diferentes aos medicamentos: em alguns casos, a mesma droga que tóxica para outra.

Iss e or 16 às variações genética xi: da população human ao surgimento de u a farmacogenômica (ou tarmacogen tica), que busca conhecer melhor as implicações dessas diferenças genéticas para s respostas individuais não só aos remédios, mas também a outras substâncias de uso comum, como o álcool e a nicotina. Guilherme Suarez-Kurtz Instituto Nacional de Câncer (RJ) 20 • CIÊNCIA HOJE • vol. 5 • no 208 cogenômica tica (indesejadas), de forma que a mesma dose de um mesmo medicamento pode ser benéfica para um paciente mas ineficaz – ou, no pior cenário, tóxica — para outro, embora os dois tenham recebido o mesmo diagnóstico clínico (figura 1). A primeira referência à variabilidade da resposta farmacológica é atribuída ao matemático grego Pitágoras (c. 80-c. 00 a. C. ), que descreveu, em 510 a. C. a intoxicação provocada por determinadas favas em alguns, mas não em todos os indivíduos que as ingeriam. Mas a farmacogenética moderna tem suas origens em meados do século 20, com a demonstração de associações entre alterações genéticas e efeitos dos medicamentos. Essa érea de estudos, que evoluiu muito nas últi- Figura 1 .

A resposta aos medicamentos pode ser benéfica (prevenção, melhora e cura de doenças, alívio do sofrimento e da dor), nula (indicação, prescrição ou uso incorretos) ou desfavorável (reações adversas e efeitos olaterais) – a farmacogenética investiga as causas hereditárias da variabilidade indivldual nessa resposta mas cinco décadas, foi recentemente rebatizada como farmacogenômica, e sua maior promessa é contribuir para a individualização da terapêutica, ou seja, a prescrição do medicamento certo e na dose adequada para cada indivíduo, com base no conhecimento dos fatores genéticos que regulam a farmacocinética e a farmacodinâmica dos medicamentos (ver ‘Definições e Conceitos’). setembro de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 21 Evolução da importantes desse período foi o do farmacólogo lemão Werner Kalow, da Universidade de Toronto (Canadá), sobre a ‘apnéia (interrupção da respiração) prolongada’, provocada pelo composto succinilcolina. Esse medicamento é usado durante a anestesia geral para causar relaxamento (‘paralisia’) da musculatura esquelética, especialmente dos musculos respiratórios.

Normalmente, os efeitos da succinilcolina duram apenas alguns minutos, devido à sua rápida destruição pela enzima colinesterase, presente no plasma sangüíneo. Para manter a paralisia muscular é preciso injetar continuamente o composto no DEFINIÇÕES E CONCEITOS sangue. Quando a infusão é interrompida, a grande maioria dos pacientes volta a respirar espontaneamente em poucos minutos. No entanto, em alguns casos (raros, felizmente! ) isso só ocorre após muitas horas, ou seja, há uma ‘apnéia prolongada’. Kalow demonstrou que isso se deve a alterações do gene da colinesterase, que se torna incapaz de destruir a succinilcolina. Em um segundo momento, a farmacogenética passou a incluir a farmacodinâmica.

Um exemplo destacado tem, novamente, a succinilcolina como protagonista e a Universidade de Toronto como um dos principais cenários. Foi observado, nos anos 0, que essa droga causava contraturas musculares em alguns pacientes (cerca de um em cada 30 mil) – efeito oposto ao relaxamento muscular esperado. O mais grave é que as contraturas vinham acompanhadas de um aumento intenso da temperatura corporal (hipertermia) e de arritmia uitas vezes fatais. PAGF 3 6 relação entre a quantidade do fármaco aplicada (a ‘dose’) e a ‘intensidade dos efeitos’ observados. A relação dose-efeito depende de processos farmacocinéticos e farmacodlnâmicos (figura 2).

A farmacologia trata do estudo dos fármacos (do A farmacocinética trata dos processos de (a) ab- rego pharmakon) ou medicamentos, substâncias sorção (acesso do medicamento à circulação que causam modificações (ações e efeitos) em obje- sanguínea sistêmica); (b) distribuição (transferência tos biológicos in vivo (em animais íntegros) ou in do medicamento do sangue para os tecidos); e (c) vitro (em tecidos, órgãos ou células isolados do or- eliminação (exclusão do medicamento do organis- ganismo). Ações e efeitos se referem tanto às res- mo), seja por excreção (na urina, nas fezes, no leite postas benéficas (pretendidas por quem prescreve materno etc. ) ou por biotransformação (alterações por quem recebe o medicamento) quanto às inde- químicas da molécula do por ação de • no 208 foi denominada hipertermia maligna e sua causa é um aumento aberrante da concentração do cálcio no interior das células que compõem as fibras musculares.

A ocorrência do problema depende de duas condições: 1) predisposição genética, relacionada a polimorfismos (ver ‘Variantes dos Genes’) associados ao receptor de rianodina, prote[na que regula a concentração de cálcio dentro das células (ver ‘Cálcio e contração muscular, em CH no 12); 2) exposição a determinados medicamentos, entre s quais a succinilcolina. As duas síndromes farmacogenéticas descritas acima são monogênicas, ou seja, em cada caso é afetado apenas um gene (da colinesterase ou do receptor de rianodina). O fato de a succinilcolina poder desencadear as duas sindromes indica que ela atua em mais de um receptor. Na verdade, são muitas as proteínas (receptores, enzimas metabolizadoras, transportadores etc. que interagem com cada medicamento, e a resposta farmacológica é tipicamente poligênica. Isso aumenta a complexidade da investigação farmacogenética e de sua aplicação na prática médica. Para complicar ainda mais a escolha do medicamento correto para cada paciente, a maioria das doenças também é poligênica. Assim, a variabilidade da resposta aos medicamentos não deve surpreender. De fato, ela sempre existiu, como diz o bioquímico Marco Aurélio Romano-Silva, da Universidade Federal de Minas Gerais: “Toda vez que uma medica ão chega na população, uma percenta tes não vai resposta pode variar de 25% (para alguns quimioterápicos antitumorais) a 90% (para analgésicos-antitérmicos, como a asprina).

O desafio a ser vencido pelos ‘farmacogeneticistas’ é investigar o componente enético da variabilidade de resposta aos medicamentos e transferir esses conhecimentos aos profissionais da saúde, aos usuários de medicamentos e ao setor produtivo, visando obter, para qualquer remédio, a melhor relação risco/benefício. Estes são as moléculas do organismo que se Um estudo com antiinflamatórios modificam quando se combinam com os medicamentos, disso resultando os efeitos farmacológicos. Na prática é geralmente Impossível medir a concentração do medicamento em seus locais de ação. Como ter acesso, por exemplo, ao interor das células tumorais, em cujos núcleos tuam muitos dos quimioterápicos usados contra o câncer?

Assim, a farmacocinética clínica baseia-se na medida da concentração dos medicamentos, principalmente no sangue e na urina, mas também no leite materno, na saliva e em outros fluidos orgânicos. Os medicamentos podem atuar em mais de um receptor e sua concentração pode variar entre os diferentes locais de ação. Além dlsso, uma mesma concentração do medicamento pode provocar efeitos de intensidade variável em receptores distintos. Idealmente, as concentrações que produzem efeitos benéficos não deveriam ausar reações adversas, isso PAGF usadas nas pesquisas na área da farmacogenética. A primeira tem seu ponto de partida nos efeitos farmacológicos: a partir daí investigam-se os polimorfismos genéticos associados.

A segunda estratégia tornou-se viável com o desenvolvimento tecnológico da genética molecular, que permitiu identificar os polimorfismos e, a partir destes, realizar estudos laboratoriais e clínicos visando avaliar seus efeitos (variações fenot[picas) em relação aos medicamentos. Essa segunda estratégia tem maior poder de análise e foi utilizada na Divisão de Farmacologia da Coordenação de Pesquisa do Instituto Nacional do Câncer (INCa), para estudar a influência de polimorfismos do gene CYP2C9 na farmacologia dos antiinflamatórios. A enzima CYP2C9, codificada pelo gene homônimo, é a principal via de eliminação dos antiinflamatórios não-esteroidais.

Esse gene é polimórfico e cinco alelos variantes (CYP2C9*2 a CYP2C9*6) já foram identificados. Os alelos *2 e *3 representam, juntos, mais de 98% do total de variantes em diferentes populações. Nosso estudo, direcionado para esses dois alelos, teve como alvo farmacológico antiinflamatório tenoxicam e o protocolo experimental foi aprovado pelo Comitê de Ética do setembro de 2004 • ClgNClA HOJE • 23 VARIANTES DOS GENES Cada um de nossos genes tem duas ‘cópias’ (alelos) no genoma, pois temos um par de cada cromossomo, e tais alelos podem ser idênticos ou apresentar variantes (mutações). Os genes que apresentam variantes alélicas com freqüência superior a 1% da população são denominados olimórficos.

O tipo mais comum de polimorfismo é a substitui um nucleotídeo, ou base nucleotídeo, ou base (os ‘tijolos’ básicos do DNA). Esses polimorfismos de base única são onhecidos pela sigla SNP, do inglês s ingle nucleotide poly- morphism (figura 3). Estima-se que 1 milhão de SNPS (um para cada mil nucleotideos) possam existir no genoma humano, dos quais 60 mil estão nas regiões que codificam as proteínas. Além dos SNPs, outros polimorfismos com consequências farmacogenéticas podem ocorrer, como alterações na região promotora (segmento do DNA que atuam fatores que estimulam a expressão do gene), defeitos no processo de recomposição (splicing) da cadeia do DNA ou duplicações, multiplicações e amplificações de genes, entre outros. Figura 3.

Os polimorfismos de base única (SNPs) são aqueles em que apenas uma ‘letra’ (um nucleotideo) do DNA está alterada – no DNA humano, com 3 bilhões de pares de nucleotídeos, ocorrem 3 milhões de SNPS Os polimorfismos podem afetar um ou os dois alelos de um gene, resultando em genótipos heterozigotos (alelos diferentes) ou homozigotos variantes (alelos mutados iguais). Polimorfismos genéticos podem levar à perda ou ao ganho de função das proteínas codificadas, embora a perda de função seja mais freqüente na farmacogenética. INCa. Participaram 331 adultos, homens e mulheres sadios, que ssinaram um termo de consentimento, e que se declararam brancos, ‘intermediários’ (pardos e mulatos) ou negros.

E-sse critério é primeira etapa do estudo — a caracterização dos alelos do gene CYP2C9 nos 331 voluntários – foram usados os métodos de seqüenciamento automático e de identificação de polimorfismos por tamanho de fragmentos de restrição (RFLP, na sigla em inglês), junto com o de reação em cadeia da polimerase (PCR, na sigla em inglês). No método RFLP, enzimas de restrição ‘cortam’ o DNA em pontos específicos, produzindo fragmentos de determinado FREQUENCIA (MEDIA) DOS ALELOS DO GENE CYP2C9 EM BRASILEIROS Alelos e freqüência observada (em %) Indivíduos CYP2C9*1 CYP2C9*2 CYP2C9*3 Total 622 84,9% Brancos 272 16 6,5% do total de alelos no grupo estudado (os restantes 84,9% tinham apenas o alelo selvagem – não mutado – CYP2C9*1). A comparação entre os grupos ‘étnicos’ revelou diferença significativa na distribuição dos alelos entre brancos e negros, com maior frequência de *2 e *3 nos brancos (figura 4).

Já a comparação com os resultados obtidos em outras populações mostrou que, apesar da forma de classificação utilizada, não havia diferenças ignificativas na distribuição dos alelos do gene CYP2C9 entre brancos brasileiros, europeus ou norte-americanos, nem entre brasileiros negros, africanos ou norte-americanos de origem africana. A segunda etapa do estudo incluiu 21 voluntários, com distintos pares de alelos para o gene CYP2Cg (12 indivíduos com alelos *1 /*1, quatro com e cinco com e cada um recebeu uma dose oral de tenoxicam. A seguir, foram coletadas amostras de sangue para dosar a concentração desse medicamento no plasma (figura 5).

A eliminação do tenoxicam, devido à sua biotransformação pela enzima CYP2C9 (figura 6), é mais enta nos voluntários heterozigotos – ou seja, com alelos diferentes (*W*2 ou *W*3) – do que nos homozigotos (*1 Isso indica que a exposição do organismo ao tenoxicam está aumentada nesses indivíduos heterozigotos, e é razoável antecipar que a exposição será anda maior em indivíduos com duas cópias dos alelos variantes ou *2/*3). A maior exposição ao tenoxlcam aumenta o risco de toxicidade, que afeta, no caso, principalmente o aparelho digestivo. A enzima CYP2C9 promove a biotransformação de cerca de 15% dos medicamentos de uso clínico, entre os quais se destaca ante varfarina, o

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