Racionalismo e arquitetura moderna
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO – FAU CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO racionalismo e arquitetura: o idealismo transformador do modernismo Priscila Henning História Social da Arquitetura e do Urbanismo Modernos ALJH 5819 Docente: Prof. Paulo Bruna Disciplina: 29 de setembro de 2 -2- 0 p ” De meu sexto andar descubro um grande trecho de Paris (… ) Conto as gruas: cinco, nove, dez. Conto dez – barram o céu com seus braços de ferro vermelhos e amarelos. À direita, meu olhar dá de encontro a uma alta muralha crivada de pequeninos buracos: um edifício novo.
Vejo ambém torres, arranha-céus construídos de pouco. (… ) O aspecto jovem recente da paisagem salta-me aos olhos, todavia não me lembra tê-la visto diversa. Gostaria de olhar lado a lado para os dois clichês: antes e depois, e me espantar com a diferença. ” (Simone de Beauvoir, em A Mulher Desiludida, 1968) A arquitetura e o urbanismo são campos disciplinares com Reduzido, elucida esta dicotomia citando a existência de “duas grandes culturas” que se opõem: por um lado, o mundo das ciências humanas e da estética, e do outro, o mundo da técnica e das ciências naturais.
A partir do século XIX, estes dois mundos foram e afastando cada vez mals ao invés de tornarem complementares, sendo que, hierarquicamente, a técnica e as ciências naturais passaram a ser consideradas “superiores” ao conhecimento artístico e humanístico, cujos defensores normalmente eram minimizados como “analfabetos da ciência”. Por esta ótica, é natural compreender por quais motivos os aspectos humanos foram, aos poucos, se ndo deixados em um segundo plano na Arquitetura, por ser um campo que está na limiar entre ciência e arte.
Entendendo-se como qualidades humanas as características subjetivas (e não técnico-racionais que influem na relação do m o espaço habitado, Modernismo na Arte e na Arquitetura, a partir do final do séc. XIX, Já haviam se iniciado alguns séculos antes, pois o período Moderno na filosofia iniciase no séc. XVII, com o Iluminismo. Foi a partir destes pensadores que o racionalismo figurou como a resposta ou caminho para as grandes questões existenciais, sociais e artísticas da época.
Descartes e sua obra prima Discurso do Método, por exemplo, responsável pelo fundamento de algumas idéias racionalistas que pautaram a arquitetura ao longo de sua tradição histórica. O método cartesiano de abordar um roblema, grosso modo, se pautava pela subdivisão do todo em partes men os complexas, as quais poderiam ser resolvidas de modo mais genérico, e raciocinar do simples ao intricado.
Este método de subdividir os problemas pode ser encontrado, por exemplo, no processo de zoneamento na cidade moderna. A arquitetura racionalista, no entanto, já existia em períodos anteriores ao moderno, e a evolução dessa abordagem da arquitetura deu origem às idéias deste período. Josep Montaner2 cita que a tradição racionalista na arquitetura francesa já data de 1675, com o Cours d’Architecture de François Blondel e elas propostas de Claude Perrault.
Laugier (em seu Essai sur l’Architecture, publicado em 1751) a Durand (professor da École Polytechnique de paris, que elabora uma metodologia em Précis de leçons d’arch 802) são outros exemplos 3 20 1997. p. 61. estrutura arquitetônica com os valores naturais; e Durand reduz a arquitetura a elementos e partes essenciais, sendo que as mesmas poderiam ser articuladas sobre uma reticula ortogonal. Este método de projetar sobre uma retícula é, inclusive, bastante utilizado na concepção de edifícios modernos.
No entanto, o transcendental movimento moder no é o que mais se aprofunda se fundamenta nas bases ideológicas do racionalismo. “Em toda esta procura recorrente da arquitetura moderna predomina o mito da arquitetura industrial, a admiração pelos procedimentos racionais utilizados pelos engenheiros, o uso da energia elétrica, o desejo de reduzir a ornamentação e a confiança em que estes procedimentos técnicos produziriam o principal meio de expressão artística” 3.
Mas estas características tão reconhecíveis da arquitetura moderna nao surglram ao acaso. Pelo contrário, muitos das propostas dos arquitetos modernos, principalmente os que integravam os primeiros CIAMs, tinham em mente a ntenção, muitas vezes utópica, de transformar o mundo e a sociedade, botando em prática muitas das idéias filosóficas, sociais e políticas dos pensadores da época. 4 20 transformação mundial em todos os sentidos.
Devido a esta nova ordem econômica e a brusca alteração de um modo de vida (e de uma visão de mundo) secular, surgiram vários problemas nas cidades cuja busca pelas soluções fomentam as propostas da arquitetura e urbanismo modernos. O desejo ideológico de otimizar d as funções da moradia e da cidade através da racionalidade tomou um direcionamento bastante uncionalista. Montaner explica: “Nos momentos culminantes da procura da utilidade, o racionalismo na arquitetura 3 op. Cit. p. 3 coincide sempre com o funcionalismo, isto é, com a premissa de que a forma é um resultado da função: o programa, os materiais, o contexto” 4. O projeto dos ambientes não segue as regras que tradicionalmente regiam a arquitetura, tais como a cultura secular ou a estética consolidada em cada região, mas sm a praticidade ea funcionalidade dentro de um mínimo de espaço e custo — e esta pretensão de gasto mínimo para a máxima produção eficiente era justamente a spiração da máquina, que tantos cultuavam como o modelo a ser seguido. 0 atingir este nível elevado era organi zado de forma lógica, tal como o funcionamento das máquinas. Assim, não é de se espantar que as propostas arquitetônicas e urbanas, frutos deste zeitgeist, eram elaboradas deste modo, procurassem comparar a vida humana à máquina. Giulio Carlo Argan ironiza em seu artigo Urbanismo, Espaço e Ambiente, ao revisar estes conceitos modernistas: “Não se propõem melhorar a relação entre o indivíduo e o ambiente, humanizando o ambiente tecnológico, mas restabelecer o quilibno tecnologizando o organismo humano”5.
No CIAM de 1933, a bordo do navio Patris, que culminou com a Carta de Atenas, os modelos urban[sticos eram o da “Cidade Funcional”, que poderia ser reduzida a quatro funções básicas (“chaves do urbanismo”): habitar, trabalhar, recrear-se e circular. “A aplicação exaustiva destes postulados conduziria à „cidade funcionalista”, com as funções bem arrumadas em lugares próprios, sem sobreposições – o contrário da cidade tradicional, com a mistura e promiscuidade funcional”6. Nas residências, este conceito se repetiu, talvez de forma ainda ais rígida.
O problema habitacional se tornou o problema maior a ser enfrentado pelos 4 MONTANER, op cita, p. 65 ARGAN, 1998, p. 222 6 OF20 favorecidas. Qualquer supérfluo adicionado poderia gerar uma maior injustiça social. A sua experiência inspirou o tema do 2 o CIAM, em 1929, onde as células habitacionais se traduziram na principal prioridade urbanística. Dentre as contribuições da experiência de Frankfurt para a racionalização máxima do modo de vida, está a famosa “Cozinha de Frankfurt’ ( Frankfufier ache, de 1926), criada por Margarete Schutte -Lihotsky (figs. 1-4).
Através e extensas pesquisas das funções da cozinha, aliadas as contribuições inovadoras da indústria, a cozinha de Frankfurt, com suas dimensõe s mínimas e estandartizadas, se tornou referência no mundo todo e constituía a célula inicial para a concepção da moradia e mesmo da cidade. E ao mesmo tempo, contribuiu com a mudança do papel social da mulher, dentro das intenções transformadoras da socie dade: com a redução da carga dos trabalhos domésticos, a mulher poderia ser liberada para o mercado de trabalho, participando das engrenagens da sociedade racional rumo ao progresso.
Fig. 1 (planta) Fig. 2 Fig. 3 Fig. 4 plástica, técnica, funcional. Cada componente da casa mínima, quer sejam móveis ou objetos como luminárias, era fruto de intensas pesquisas que procuravam reduzir os hábitos e simplificar os usos ao maximo possível. Fig. 5 Piet Mondrian Fig. 6 Alma Bucher Cômodo para quartode criança, Catálogo de modelos Bauhaus, 1924 7 8 MONTANER, op cit. , p. 68 Op. Cit. p. 87 -8- Fig• 7 Fig. Gerrit Rietveld Casa do arquiteto de interiores Truus, 1924 Não pode se negar que a estética simples e desprovida de excessos, perfeitas para a reprodução em série ela indústria, acabou erando uma linguagem Racionalismo frente ao caos urbano e habitacional A indústria capitalista gerou um caos urbano de grandes proporções: Mumford chega a afirmar que “o industrialismo, a principal força criadora do século XIX, produziu o mais degradado ambiente urbano que o mundo jamais vira”9.
As cidades eram ambientes inóspitos, sem higiene e salubridade, sofriam o inchaço populacional de um lado, enquanto a especulação imobiliária gerava o caos habitacional de outro. Neste aspecto, pode-se creditar a esta crise urbana o surgimento do Urbanismo formal, enquanto ciência autônoma. Na esteira desta crise urbana, pela primeira vez procurou-se enfrentar o problema urbano de forma pluridisciplinar e integrada e não apenas considerando o desenho urbano como atividade empíric a ou meramente artística. Tais problemas colocam a necessidade de respostas estruturadas em moldes científicos e espaciais. A organização das areas habitacionais e do alojamento – fornecendo casas a todos a criação de condições de higiene e salubridade, a organização das funções industriais e da expansão urbana, a infra-estrutura e o equipamento, constituem os maiores problemas que a rbanística teve que enfrentar desde o Início”10. Assim, o nascimento do Urbanismo enquanto campo disciplinar veio em meio construção de novos bairros e conjuntos e a demolição de centros urbanos degradados.
Visava-se o saneamento da cidade, mas também resolver de forma significativa o problema da habitação po pular, que havia se agravado com as guerras de 1870 e a Primeira Guerra Mundial (1914-18). Os arquitetos do início do século XX propunham projetos urbanos e habitacionais cada vez mais simples e funcionais – a tentativa de chegar à essência da vida humana. Além disto, havia a uestão intensamente econômica e social, que nortearam os princípios dos 9 MUMFORD, 1998. p. 484. LAMAS, 2000. p. 31-234 10 -10 primeiros CIAMs. Ao final do primeiro Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, em La Sarraz, os arquitetos participantes afirmaram, segundo Anatole Kopp, que a arquitetura moderna deveria “romper com a tradição que não queria ver na arquitetura senão seus aspectos artísticos (e eventualmente técnicos)” , recolocando em evidência “as relaçóes existentes entre a arquitetura e os problemas econômicos e sociais”11. A urbanística moderna qu 0 DF 20 ir das experimentações e