Revisitando a infancia
colóquio do CEPSI IP/FE-USP Psicanálise, infância e educação IAn. 3 Col. I [picl I How to cite this IP/FE-usp Oct. 2001 5 Swipe nentp I Re-visitando a infância contemporânea: passagens, possibilidades e destinos I Lucia Rabello de Castro 1 I Fazer jus ao título convocante desta mesa-redonda – o término, ou mais cruelmente, a morte da infância – me remete a uma loutra indagação que problematiza esta pergunta. Como e por que a infância, e somente a infância, pode ser considerada como Imorta, acabada? or que não surge com igual força simbólica no horizonte de inquietações da nossa época, a morte da I adolescência, ou ainda da adultidade? Se só a infância pode morrer, e morre basicamente para nós adultos, talvez não seja I Ide todo impertinente indagar qual a ansiedade/angústia de morte que a infância de hoje nos evoca? Que profundos complexos Isão mobilizados em nós adultos para que perguntemos, cheios de temor e inquietação, “morreu a infância”? como? por que? Ou Finda, de quem foi a ‘culpa’? uem a matou? I Entretanto, estas provocações iniciais têm sentido apenas para dar uma fulguração rápida e antecipada, como também Iprincipalmente afetiva, do sentido fundamental da minha rgumentação que retoma esta questão como deslizamento para pontuar Iquatro dimensões por onde fundamentaria qualquer discussão sobre a questão da infância no contemporâneo: la primeira diz respeito ao saber que opera sobre a infância, no sentido de posicioná-lo dentro de um ponto de vista Iconstrucionista.
Neste sentido o lugar de onde se pergunta sobre o término ou a mor é isotrópico àquele que 20FIS la segunda dimensãodiz respeito ao sentido da infância, enquanto resultante de práticas discursivas e sociais, como apondo al I adolescência, a adultidade e a senescência. Assim como omem e mulher, criança e adulto são construções que se definem I Ireciprocamente, e como dispositivos discursivos para a ação e orientação no mundo surgem marcados pela posicionalidade, ou I Iseja, construções da realidade a partir de determinadas condições de materialidade e posições de poder.
Assim, as I definições do que seja a criança e o adulto estão sempre enquistadas nas lutas, nos embates, nos confrontos e atritos entre I los vários grupos de interesse na sociedade; la terceira dimensão diz respeito à construção das diferenças entre adultos e crianças. Crianças e adultos são, em qualquer I cultura humana, nos dizem os antropólogos, considerados diferentes, mas sabe-se que esta diferença difere em épocas e Iculturas diversas, ou seja, a diferença é produzida social e historicamente.
Quando, por exemplo, se anuncia a “adultização I Ida infância”, lamenta-se a perda de uma infância que se tornou essencializada e paradigmática; lenfim, a quarta dimensão por onde se poderia dialetizar a proposição de uma morte da infância diz respeito a um sentido lético e politico da construção da sociedade humana, e, por conseguinte, da própria infância enquanto possibilidade humana.
IA morte da infância p tituir como co-terminal a 30F Inão tão somente o fim, mas principalmente a impossibilidade do sonho, da utopia, da vontade política de um destino melhor, I tanto para a história, como para o sujeito, ou como para a criança. Significa, outrossim, o amortecimento da Iresponsabilidade frente ao status quo, pois frente à morte, o que o homem e a mulher podem fazer? Recusa-se, portanto, a Iconstrução da história humana, do sujeito e da infância, enquanto produtos da agência humana, o que demanda a permanente Iretomada e re-elaboraçáo de caminhos e de lutas.
I No documentário feito recentemente aqui no Brasil chamado A Invenção da Infância (2000), a diretora Liliana Sulzbach2 Idesenvolve duas idéias: a de que a infância – frágil, inocente – é inventada a partir do Renascimento e consolidada nos I Isetecentos e oitocentos; e de que esta infância — ideal — se encontra ameaçada nos dias de hoje, seja pela exploração do Itrabalho infantil, seja pela competição e individualismo exacerbados numa cultura de consumo que “adultizam” precocemente las crianças. Assim, conclui a diretora: ser criança nao significa ter infância.
I Busco este exemplo para indicar uma tese comumente reiterada: a de que infância moderna esteja ameaçada de extinção; e que I leste fato seja lamentável pela perda Justamente desta infância — inocente e frágil. Assim, a infância moderna figurada linocente, frágil, imatura e dependente se tornou um índice da trajetória civilizatória universal a se realizar I apoteoticamente no adulto, branco, independente, individualizado, senhor da vontade e da razão. 40F do adulto, que I Ide posse do Logos retira o sujeito humano do obscurantismo e da sujeição à natureza.
No entanto, para os frankfurtianos Icomo T. Adorno por exemp103 , esta démarche de pseudo- libertação do homem por esta forma histórica de razão, a razão linstrumental, nao é dada ao homem, mas deve ser por ele conquistada ao longo de seu devir histórico. Assim, ascetismo e Irenúncia são os vetores que vão arrancar e desenraizar o sujeito humano da naturalidade da espécie, do embrutecimento dos Isentidos e das paixões, dos mitos e da “particularidade sofredora” onde cada sujeito não se vê como parte deste telos lirrevers(vel da história que é o progresso.
Ulisses, segundo Adorno, é o herói emblemático deste racionalismo que através Ida sua Odisséia – com dor e renúncia – precisa livrar-se dos preconceitos para ascender à sua verdadeira condição humana. I Analogamente, na trajetória ontogenética, a criança só ascenderá ao real do humano, ou seja, à racionalidade, ? lindividualização, à autonomia por um processo de depuração de suas características ditas infantis. Para tal, se linstitucionalizam os processos de tutela, proteção e socialização necessários à consecução do Ulisses moderno.
I Criança moderna figurada na inocência e adulto moderno figurado na completude da Ratio instrumental articulam I reciprocamente o balizamento subjetivo engendrado pelas novas condições do mundo moderno. Assim, os sujeitos particulares -I se daria lugar ao adulto preparado I Ipara o domínio de si, do outro e da natureza. IA ficção universalizante da infância – como também da adultidade – encerra também a reificação do conceito de ser criança lem práticas histórica e culturalmente situadas, como por ex. er criança é ir para a escola, é brincar, é nao ter Iresponsabilidades, é não precisar trabalhar e assim por diante. Ainda, por mais que o direito positivo ocidental tenha I Irecentemente manifestado a preocupação com a criança enquanto um sujeito de direitos, através da Convenção Internacional Idos Direitos da Criança, problematiza-se também sua racionalidade universalizante que abstraindo de situações particulares, I I impôs aos países signatários uma visão de criança, assim como uma visão de sociedade.
IA infância universalizada nas práticas sócio-culturais que lhe deram um estatuto de Inocência e fragilidade não seria, lentão, a meu ver, nada mais que uma narrativa, uma ficção por onde a racionalidade ocidental moderna construiu, através de Imarcos etários rígidos e universais, o acesso à “idade da razão”, ou ainda, à plena cidadania, dentro de uma sociedade que Ise quis igualitária e livre.
Esta infância por certo hoje morre, e acrescentaria, deve morrer, na medida em que enquanto Inarrativa que orienta a ação no mundo dos vivos se torna cada vez mais inadequada para explicar a relação entre adulto e Icriança no mundo contemporâneo. Aliás, talvez, já nasceu inadequada uma vez que, segundo Alanen4 , evoluiu de uma Iperspectiva sectária – 6 OF IS esticada no âmbito da esta infância para dar lugar a outra ou outras, que, também I I Ipor nós inventadas, poderão nos guiar na construção das nossas possibilidades individuais e coletivas.
IA invenção de novas narrativas da, ou sobre a infância, reconhece a infância como posição estruturante nos processos Isociais na cadeia geracional, por onde tanto a produção como a reprodução cultural e institucional se realizam. Assim, no Ibojo de uma analítica geracional, a infância pode ser vista como uma posição, que não só gera saber sobre si própria e, Iportanto, também concorre para se auto-determinar e se auto-construir, como também engrossa as perspectivas sobre o undo Isocial co-atuando com seus parceiros de gerações antecedentes.
IA infância, enquanto uma posição, permite a ampliação, a expansão, como também a transformação do instituído a partir de uml loutro ponto de Vista diferente do adulto. Frequentemente, quando se pensa na infância, tende-se a percebê-la, usando uma lexpressao de Niklas Luhman5 como uma “máquina trivial”, ou seja, uma que transforma inputs em outputs sem qualquer função Ide transformação. Segundo Luhman, se as crianças fossem ‘máquinas triviais’, aprendendo apenas o que lhes é ensinado por
Isuas professoras, respondendo apenas da forma como lhes é putativamente apontado como correto, a espécie humana já teria I Isido eliminada há muito tempo. Assim, a sociedade (dos adultos), o conhecimento instituído, como também as relações sociais I Ilegitimadas são perm transformadas por IS a infância constitui um aspecto estruturante das sociedades observando sua Iparticipação no mundo do trabalho, já que as crianças, enquanto uma categoria social ou posiçao, são parte integrante da Idivisão social do trabalho em qualquer sociedade humana, mesmo na nossa em que seu trabalho se restringe ao escolar.
ICertamente o trabalho escolar das crianças serve para consolidar práticas e saberes no mundo do trabalho em geral, como por I I exemplo, a crescente demanda por um tipo determinado de trabalho adulto baseado cada vez mais na decifração de códigos lescritos. A divisão geracional do trabalho deve ser encarada diacronicamente, e portanto, seguindo o discurso marxista, se I las máquinas são trabalho vivo coagulado, então, pode-se seguramente afirmar que as qualificações básicas dos adultos Inecessárias nas sociedades industriais são trabalho infantil coagulad06 .
Deste modo, crianças e adultos são parceiros na Iconstruçao do mundo em que vivemos, mesmo que as primeiras estejam historicamente invisibilizadas seja pela definição Isocial de que são um “passivo”, “um custo social”, e portanto para quem nao se devem reverter as riquezas geradas, seja I I ainda através de um processo cultural de menorização ou familialização. I Creio, portanto, que as novas narrativas sobre a infância devem reconhecer sua posição estruturante nas relações sociais londe a permanência e a mudan a social se dão.
Assim, no quadro de mudanças soci des proto-capitalistas às 0F infância pode ser considerada a co-adjuvante do adulto na medida em que se prepara, através do trabalho escolar, Ipara assumir seu lugar eventual de trabalhador e cidadão. Em seguida às mudanças operadas no bojo do sistema capitalista, Ique introduziram uma diacronicidade crescente entre produção e consumo, e uma preponderância dos valores de troca sobre os Ivalores de uso, alavanca-se a dimensão do consumo nas sociedades capitalistas modernas, e com isso, o papel do consumidor.
IA infância passa, então, a se situar numa nova efetividade social, enquanto consumidor. A lógica do consumo traz lvisibilidade para a infância na dinâmica social como um parceiro ativo nao somente no tocante ao direcionamento do que Iproduz, como também no re-ordenamento de questões sobre a infância. Como exemplo, colocaria que é justamente no âmbito das I Itransformaçbes da cultura de consumo que se articulam as indagações sobre a morte da infância, já que num processo I aparentemente de ‘adultizaçao’ as crianças competem com os adultos na reivindicação do lazer, do consumo de bens simbólicos le materiais.
I Gostaria de avançar um pouco mais na consideração sobre ovas possibilidades de se narrar a infância hoje, ousando pensá- lal linserida no quadro de outras mais recentes transformações do contemporâneo que apontam para a emergência de novos sentidos Irelacionais entre criança e adulto. A tese que apresento a seguir é apenas tentativa , um esforço para Isocial, uma nova condição de subjetivação no contemporâne07 .
A metrópole de hoje, diferentemente da grande cidade de 50 lanos atrás, se tornou o epicentro dos processos de troca, como também de produção e irradiação de novos valores e signos da I Icultura. É na cidade onde também se enfrenta, se assimila e e transforma o impacto da crescente des-terrritorializaçao dos I elementos culturais num processo vertiginoso de desconexão/fragmentação de tudo – pessoas e objetos – de seu lugar, de sua I lorigem e de sua história.
Fredric Jameson8 já observou em certo momento o sentido eminentemente espacial, em detrimento do I temporal, que re-conecta os elementos do cotidiano urbano. Nesta nova ordem, ou desordem, de condições subjetivantes, Iparece que os sujeitos se vêem interpelados a outras posições, como a de, por exemplo, um permanente deslocar-se, onde o Imovimento e a circulação em si epitomizam as múltiplas e iversas possibilidades de identificação.
Assim, se trata de uma loutra lógica de socialidade e subjetivação – a de circulação (e aqui também me refiro a espaços virtuais de circulação) Ipor onde a diversidade do cosmos, ou do planeta se o preferem, presentificada na cidade plural e cosmopolita, instaura Inovas demandas de multi-localização e multi-pertencimento através de um processo de contínua e centrífuga expansão Isub]etiva. Parece ser um processo que se observa hoje tanto para crianças, como para adultos, igualmente submetidos a esta Inova lógica, ainda qu am, por forca das outras 0