Um olhar antropológico sobre a questão ambiental
MANA 2004 UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE A QUESTÃO AMBIENTAL Guillermo Foladori e Javier Taks A relação entre sociedade e meio ambiente vem se afirmando como uma das principais preocupações, tanto no campo das políticas públicas quanto no da produção de conhecimento. A antropologia, tal como se expressa nas revistas especializadas e também na constituição de grupos de pesquisa que pretendem influir diretamente s OF40 civil, não permanece Swipe view next page O que não é de surpr ende empíricos e metodol bem situadas para e izações da sociedade to (Little 1999). antecedentes iencias sociais mais ntal, abordando- a de um ponto de vista global e interdisciplinar. A antropologia nasceu, afinal, perguntando-se sobre a transformação antrópica que diferentes sociedades produziram em seu ambiente, sobre a continuidade e diferença da espécie humana em relação aos demais seres vivos, e sobre o lugar da consciência na evolução social. Além disso, o advento da disciplina no contexto colonial, ligado às políticas de controle e mudança social (Leclerc 1 973; Kuper 1973), fazemna herdeira de uma vocação de “análise e intervenção” (Brosius 1999).
Este artigo destaca duas áreas m que a antropologia pode contribuir para a compreensão da problemática ambiental e de suas politicas. A primeira é informativa, e nela seu papel é desmistificar os preconceitos sobre a relação das sociedades com seus ambientes naturais — preconceitos tais como os mitos da existência de um v(nculo da tecnologia moderna como causa última da crise ecológica, ou o do papel sacrossanto da ciência como guia em direção ? sustentabilidade.
A segunda área é metodológica, e concerne ? questão de como abordar os problemas ambientais de modo a caminhar rumo a sociedades mais sustentáveis. Está claro que, em qualquer dos casos, os méritos não são exclusivos da antropologia, e que esta procede em colaboração com muitas outras disciplinas. 324 UM OLHAR ANTROPOLOGICO SOBRE A QUESTAO AMBIENTAL Contra o fundamentalismo: entre românticos ecológicos e cornucopianos O caráter complexo, global e interdisciplinar da problemática ambiental tem gerado uma gama de posições que nem sempre correspondem às expectativas políticas.
Há grupos, tanto de esquerda quanto de direita, que tomam as sociedades simples como ideal de equilíbrio ecológico; paralelamente, há grupos e direita e também de esquerda que rechaçam as leis da ecologia como guia para o comportamento humano (Foladori 2000). Várias aparentes incoerências entre posição política e proposta ambiental devem-se à complexidade do tema, e não vão desaparecer. Outras derivam de argumentos de forte conteúdo mítico e fundamentalista que refletem, em parte, falta de informação sobre o assunto, e a antropologia tem um papel importante na desmitificação de muitos desses argumentos.
Utilizaremos as seguintes afirmações como exemplo: 1) As sociedades primitivas estabeleciam uma relação harmônica com a natureza. ? freqüente encontrar afirmações como essa, seja em textos de divulgação, seja em propostas políticas. A imagem de sociedades pré-industriais ou pré-capitalistas vivendo em harmonia com a natureza tem o apelo de, presumidamente, oferecer exemplos reais de convivência equilibrada co 2 40 a natureza tem o apelo de, presumidamente, oferecer exemplos reais de convivência equilibrada com esta.
Trata-se, todavia, de uma afirmação duvidosa, não apenas por sua generalidade, ao considerar como iguais todas as sociedades pré-industriais, como também por seu romantismo, que sugere possuírem as ditas ociedades um grau de consciência e atividade planificadas difícil de imaginar mesmo no caso de grupos pequenos. Reconhece- se, hoje, que as populações que, há cerca de 12 mil anos, cruzaram a “ponte” de Beringia do nordeste asiático para o Alasca, participaram na extinção de mamutes, mastodontes e outros grandes mamíferos, à medida que avançavam rumo ao sul do continente.
A conhecida tese de Martin (1984), sobre o papel dos caçadores paleolíticos na extinção de animais em continentes de colonização tardia, forneceu uma prova dos efeitos diretos e indiretos que sociedades com tecnologias “simples” são apazes de provocar a longo prazo sobre o meio ambiente — ainda que outras variáveis, como mudanças climáticas, possam também intervir (Haynes 2002). A responsabilidade de caçadores e coletores na extinção da megafauna nos continentes de colonização tardia se repete no caso das grandes aves, nas ilhas (Steadman e Martin 2003; Anderson 2002; Leacky e Lewin 1998).
A fragmentação do habitat, resultante da derrubada das matas, a caça indiscriminada e a introdução de espécies predadoras exó- 325 ticas são causas que não diferem, qualitativamente, daquelas ue, hoje, são identificadas como responsáveis pela extinção de espécies. Leacky e Lewin concluem: Não são necessárias máquinas de desmatamento maciço para provocar grandes danos ambientais. As sociedades com tecnologia pr 3 40 máquinas de desmatamento maciço para provocar grandes danos ambientais.
As sociedades com tecnologia primitiva estabeleceram, no passado recente, uma marca insuperada nesse sentido, já que desencadearam o que, nas palavras de Storrs Olson, consistiu em “umas das mais rápidas e graves catástrofes biológicas da história da Terra” (Leacky e Lewin 1998:192). A destruição da megafauna é apenas a manifestação mais vis[vel das transformações que, desde os hominídeos que antecederam o Homo sapiens, vêm sendo impostas aos ecossistemas. Também em um nível orgânico “menor” registraram-se consequências significativas.
Em suas atividades de coleta e de caça, os hominídeos adquiriram parasitas próprios aos primatas e outros microrganismos, que transformaram os ecossistemas. A domesticação de plantas e animais, há aproximadamente IO mil anos, implicou alterações radicais, com o sedentarismo, novas dietas, concentrações populacionais e de lixo, de nimais domésticos e de plantas, que afetaram radicalmente a coevolução dos microrganismos. É possível que muitas infecções contemporâneas (tuberculose, antraz, brucelose etc. tenham sua origem na domesticação de animais, no contato direto com eles e no consumo de produtos deles derivados, como leite, peles e couros (Barret et alii 1998). As epidemias de varíola entre os anos 251 e 266 d. C. , a peste bubônica nos séculos XII e XIV, e as catástrofes provocadas pelas epidemias na América espanhola do século XVI são exemplos eloquentes de uma relação pouco harmônica com a natureza externa e interna ao er humano, ainda que estes resultados tenham sido indiretos e não intencionais.
Inhorn (1990) revisa a literatura da antropologia médica dedicada às doenças infecciosas, revelando suas contribu 4 40 literatura da antropologia médica dedicada às doenças infecciosas, revelando suas contribuições e ressaltando exemplos de comportamentos que favorecem ou limitam as epidemias e destacando o papel das doenças no processo de seleção natural. Na discussão sobre as atitudes e relações das sociedades não- ocidentais com o meio ambiente, a antropologia tem se detido o estudo das transformações materiais e se ocupado da análise da concepção que os povos fazem da natureza exteriorl .
Nesse processo, foi necessário questionar a própria teoria da relação entre sociedade e natureza. Abandonando-se o ponto de vista etnocêntrico, que considerava a natureza co- 326 UM OLHAR ANTROPO ÓGICO SOBRE A QUESTÃO AMBIENTAL mo a ordem objetiva — a ser descrita segundo as ciências naturais, e à qual cada povo atribuía significados culturais diversos segundo um modelo mental intra- ou supraorgânico —, passou-se a uma atitude, no m[nimo, cuidadosa no tratamento o dualismo natureza/cultura, de origem cartesiana (Ellen 1996), tendo-se chegado até mesmo a visar sua total dissolução (Ingold 2000a).
O foco da atenção está centrado na análise das inter- relações e mediações entre sociopráticas materiais e construção ideológica. Embora as conclusões sejam anda provisórias, há consenso de que as ideologias organicistas, próprias dos grupos caçadores-coletores, não têm necessariamente como correlatos formas que permitam a reprodução a longo prazo de processos biofísicos (Escobar 1999; Headland 1997).
E, como assinala Milton (1 996), há sociedades não-industriais, estudadas por antropólogos, como os Nayaka da índia, que não reconhecem a responsabilidade humana na proteção do ambiente, pois isso os obrigaria a rever a idéias de que é a natureza quem cui s 0 humana na proteção do ambiente, pois isso os obrigaria a rever a idéias de que é a natureza quem cuida deles.
Em todo caso, se alguma conclusão geral pode ser tirada, é a de que a natureza não pode ser considerada como algo externo, a que a sociedade humana se adapta, mas sim em um entorno de coevolução, no qual cada atividade humana implica a emergência e dinâmicas próprias e independentes na natureza externa, ao mesmo tempo que, em um efeitobumerangue, produz impactos na natureza social e na biologia das populações humanas.
No interior desse complexo de forças, não é possível esperar que as atividades das sociedades não-industriais sejam “adaptativas” (no sentido de tender ao equilbrio), enquanto que a sociedade industrial moderna seria “não-adaptativa”. A revitalização contemporânea do mito da “sabedoria ambiental primitiva” tem várias explicações (Milton 1996; 1997). Primeiro, uma falsa identificação entre as práticas econômicas e rituais de rupos detentores de tecnologias de baixo impacto ambiental, de um lado, e as técnicas aparentemente similares descritas pelos modernos teóricos da agroecologia, de outro.
Isto constitui uma bandeira política de grande apelo em sociedades com uma população rural significativa, tendendo a Justificar as modernas propostas conservacionistas ou ecologistas de gestão ambiental, que incorporam populações nativas. De fato, toda sociedade possui determinados conhecimentos e práticas que conduzem à reprodução da natureza externa, ou ao cuidado com ela, sem por isso excluir outros que acarretam efeitos depredatórios u degradantes sobre os ecossistemas.
Segundo, a crítica ao industrialismo como causa última da crise ambiental tem necessidade da alternativa que as “sociedades primitivas” a 6 40 última da crise ambiental tem necessidade da alternativa que as “sociedades primitivas” aparentemente oferecem: satisfação de necessidades básicas acoplada a sis- 327 temas tecnológicos elementares e ao uso de fontes energéticas renováveis.
Terceiro, os próprios “nativos” têm visto, na divulgação de sua imagem como “protetores da terra”, uma ferramenta política e econômica para obter o apoio e inanciamento de grupos ambientalistas de pressão em nível internacional, contra a marginalização e opressão por parte dos governos e burocracias nacionais. Conhecer a realidade contraditória dos supostos “guardiães” da natureza (povos “primitivos”) causa confusão a muitos grupos ambientalistas bem intencionados, ou os leva à recusa irrefletida das evidências.
Todavia, há que enfatizar a ambigüidade da prática social humana, como sublinha Ellen para o caso dos Sioux: “a espiritualidade ambiental dos Sioux anda de mãos dadas com uma dieta vorazmente carnívora, da mesma maneira que o egetarianismo hindu é encontrado em uma sociedade de extrema pobreza e desequilbrio ambiental” (Ellen 1986:10). E conclui: “nenhuma cultura humana detém o monopólio da sabedoria ambiental, e parece improvável que possamos um dia escapar de alguns dos mais profundos dilemas da vida social humana (Ellen 1986:10).
Criticar o pensamento ambiental romântico não significa ser indiferente às práticas tradicionais que, freqüentemente, são consideradas ineficientes pela ciência hegemônica. Um exemplo eloqüente é o reconhecimento de que a propriedade coletiva dos recursos naturais não conduz ecessariamente, ao contrário do que sugere a hipótese de Hardin (1989) sobre a “tragédia dos espaços coletivos”, 40 ao contrário do que sugere a hipótese de Hardin (1989) sobre a “tragédia dos espaços coletivos”, a uma atitude negligente ou depredatória sobre o meio ambiente.
Segundo Hardin, os espaços coletivos são depredados porque, nao sendo propriedade privada, não são do interesse de ninguém. A consequência implícita é que o problema é solucionado estendendo-se às áreas comuns os direitos de propriedade privada. A confusão conceitual provém da visão ideológica de Hardin, para quem o sistema capitalista é o único existente, e o único possível. No interior de um regime de propriedade privada, os espaços públicos, comuns ou coletivos tendem a ser utilizados para fins privados, já que tal é a lógica das relações de produção dominantes.
Mas, quando estamos diante de recursos apropriados de forma coletiva, que não se regem totalmente por relações de propriedade privada, ou estão menos integrados ao mercado, os recursos coletivos não necessariamente se degradam, como demonstram muitos estudos recentes (Ostrom 1990; Berkes e Folke 1 998; Orlove 2002). Este é outro exemplo da falsidade da contradição entre sociedade cap’talista e não- capitalista. Para Hardin e outros, existem apenas dois pólos, o capitalismo e o resto. Mas essa dicotomia não se sustenta.
Existem múltiplas formas pré- ou não-capitalistas de organização 328 cial, que estabelecem regulações diferentes e contraditórias com a natureza externa (Glacken 1996; Ellen 1999; Faladori 2001). Alguns informes das Nações Unidas reconhecem, hoje, que sociedades agrícolas menos incorporadas ao mercado exibem maior equilibrio ambiental, e que sua integração ao mercado seria ausa de um incremento da degradação do ambiente (Ambler 19 8 40 e que sua Integração ao mercado seria causa de um incremento da degradação do ambiente (Ambler 1999).
Segundo Ingerson (1994, 1997), até mesmo os estudantes de antropologia se surpreendem ao reconhecer o caráter contraditório das sociedades menos complexas em suas relações com o meio ambiente. por um lado, aqueles que tinham no “mito do bom selvagem” uma ferramenta de esperança frente à degradação ecológica contemporânea sentem-se frustrados.
Por outro lado, aqueles que supunham que a degradação ambiental era ma prerrogativa da sociedade industrial ou capitalista vêemse sem alternativa, já que essa degradação se afiguraria como um comportamento cultural universal. Ingerson conclui que o maior desafio para a antropologia ecológica de corte histórico e comparativo é ensinar que ” uma relação benigna de longo prazo entre os seres humanos e a natureza [… ] pode ser algo sem precedentes sem que, por isso, seja necessariamente impossvel” (Ingerson 1997:616).
A desmistificação da “sabedoria ecológica primitiva” não exclui que a antropologia social tenha gerado contribuições sobre “o alcance e status os conhecimentos e técnicas tradicionais de gestão de recursos” (Descola e Pálsson 1996: 12), resgatando assim o conhecimento prático dos diversos povos e a necessidade de participação das populações locais na produção de uma nova síntese, lado a lado com a ciência gerada nos laboratórios e centros de investigação (Richards 1985; Toledo 1992).
Esta articulação de saberes não deve ser entendida em termos de anexação de uma ciência nativa para complementar a ciência ocidental, mas como estabelecimento de um ecletismo inovador (Ellen e Harris 2000). A antropologia, de certa maneira, pretende ferecer um olhar sobre a relação sociedade- Harris 2000).
A antropologia, de certa maneira, pretende oferecer um olhar sobre a relação sociedade-natureza, que não caia nem no romantismo ambientalista daqueles que vêem, em algumas sociedades pré-capitalistas, um modelo de sustentabilidade ambiental (e às vezes social), nem na apologia modernista do capitalismo, baseada na aplicação da ciência e da tecnologia hegemônicas. 2) A crise ambiental é um resultado do grau de desenvolvimento técnico. Alguns movimentos ambientalistas contemporâneos e muitos autores ecodesenvolvimentistas entram sua crítica da crise ambiental no desenvolvimento tecnológico e industria12.
Partem do suposto, muitas vezes não explicitado, de uma evolução autônoma da técnica e da tecnologia, 329 uma evolução linear desde instrumentos simples até máquinas complexas, paralela à alienação dos homens com respeito aos Instrumentos de trabalho e ao meio ambiente — o que Pfaffenberger chama a “visão padrão da tecnologia” (1992). Diante da idéia da crescente alienação da humanidade com relação aos instrumentos que cria, a antropologia contemporânea questiona suposta autonomia da tecnologia frente às relações sociais de produção, às decisões políticas e ao papel do conhecimento.
Os estudos mais recentes demonstram o intrincado vínculo entre relações de produção e desenvolvimento da técnica e da tecnologia de qualquer época (Guyer 1988; Pfaffenberger 1988, 1992; Hornborg 1992). Guyer, por exemplo, escreve: “Tecnologias são necessariamente sociais e políticas na medida em que implicam [… ] formas de organização e dominação [… ] e são necessariamente imbuídas de significados culturais por meio de associações simbólicas” (Guyer 1988:254). Neste senti 0 DF 40