Habermas

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Habermas e a Ética do Discurso Luiz Bernardo Leite Araujo* O movimento de reabilitação da razão prática dos últimos decênios inspira-se fundamentalmente de Aristóteles e de Kant. Mas a retomada dos temas da ética aristotélica e da teoria moral kantiana é mediada pelo pensamento de Hegel e sua tentativa de efetuar uma síntese entre os dois modelos clássico e moderno da filosofia prática.

Ora, a Ética do Discurso de KarlOtto Apel (1922) e de Jürgen Habermas (1929) é um programa que se inscreve na vertente kantiana das recentes teorias morais a partir da incorporação de certos motivos impo crítica hegeliana ao u crs r18 Apel, seu prmeiro in rad… Sv. ipe to view nut*ge como uma resposta desafio principal éo la é apresentada por a da ética, cujo imprevisível das conseqú ncias e dos efeitos secundários das ações coletivas do homem no domínio da ciência e da técnica fundada sobre ela.

Tal situação é caracterizada por novos traços que impõem Imites às formas tradicionais da ética, exigindo a formulação de um programa que esteja à altura de sua complexidade. Segundo Apel, a filosofia de hoje deve enfrentar o problema aparentemente paradoxal de uma fundamentação racional da ética na era da ciência.

Trata-se de m paradoxo porque a racionalidade científica que requer o estabelecimento de uma espécie de macro-ética planetária da responsabilidade, em razão das consequências do processo de racionalização de que ela foi portadora, é a mesma que parece válida em nossa época, em virtude da neutralidade axiológica da racionalidade técnico-instrumental e estratégica, a qual determinou a forma moderna da raconalidade em geral. A constelação fundamental e paradoxal da fundamentação racional, necessária mas aparentemente impossível, de uma ética universalmente válida na era da ciência, que é um resultado daquilo que Max

Weber descreveu como um processo de racionalização e desencantamento do mundo, fo marcante na situação da filosofia na primeira metade do século passado. Nessa ótica, o cientificismo e o existencialismo formaram um verdadeiro sistema de complementaridade que não está, a juízo de Apel, inteiramente superado, em que pese o referido movimento de reabilitacão da razão prática. Por conseguinte, a Ética do Discurso pode ser apresentada como uma concepçao kantiana pós-hegeliana da filosofia prática que se inscreve num universo pós-metaffsico de pensamento.

Segundo Habermas, com efeito, a querela entre os ilósofos gravita ainda hoje em torno do preço que Kant teve de pagar para estabelecer um conceito pós-tradicional de moral autônoma, já que, numa leitura semelhante àquela de Apel acerca do significado moderno da Doutor em Filosofia pela Université Catholique de Louvain (Bélgica), professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Pesquisador do CNPq. ecno-ciência, Habermas considera ue, entre as três direções tomadas pela Ética a parti 18 domínio da razão, uma outra de redução do raciocínio moral ao modelo da racionalidade eios-fins, apenas Kant atribuiu ao juízo moral um lugar no domínio da razão prática, e dai uma autêntica pretensão de conhecimento.

Entretanto, os conceitos universalistas de moral oriundos da perspectiva aberta por Kant parecem conduzir a enormes abstrações, dentre as quais cabe citar, à luz das objeções erguidas por Hegel em seu tempo, a dos motivos requeridos para agir moralmente, a da situação dada a cada momento e a da vida ética concreta: o deontologismo, em prmeiro lugar, conduz à separação abstrata entre o justo e o bem, entre o dever e a inclinação; o cognitivismo, em seguida, torna o agente moral insensível em ace do contexto e surdo ante as conseqüências da ação; e o formalismo, por último, com sua abstração das instituições e formas de vida existentes, dá ensejo a noções atomistas de pessoa e contratualistas de sociedade.

Todas essas críticas, tomadas com cautela pela Ética do Discurso, situa- nos, sob as condições do pensamento pós-metafísico, diante das alternativas de um retorno ao aristotelismo ou de uma modificação da abordagem kantiana. A transformação do universalismo moral de Kant é a via escolhida pela Diskursethik como a única possível perante os desafios éticos, políticos e jurídicos contemporâneos. Trata-se, assim, de uma perspectiva teórica que pretende associar o estádio pósconvencional da identidade moral, alcançado pelas abordagens orientadas por princípios universais, a uma consideração efetiva das reservas em relação às abstrações deontológicas, cognitivistas e formalistas de ue elas seriam portadoras. Isso significa que a Ética d cognitivistas e formalistas de que elas seriam portadoras.

Isso significa que a Ética do Discurso reivindica seu lugar na tradição kantiana de uma moral deontológica (concentrada na questão da fundamentação da validez prescritiva de mandamentos ou normas de ação), cognitivista fundada na idéia segundo a qual a decisão de agir conforme uma certa norma, bem como a escolha da norma enquanto tal, são suscetíveis de argumentação racional), formalista (limitada ao estabelecimento de um princípio ou procedimento de justificação das normas) e universalista (defensora da superação dos limites históricos e culturais pelas estruturas “transcendentes” da comunicação, nas quais se baseia a fundamentação daquele princípio), sem expor-se, graças ? superação do caráter monológico e do modelo metafísico de justificação da moralidade, às objeções do contextualismo contemporâneo.

A despeito das ivergências entre Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas quanto ao alcance e aos limites de uma fundamentação pragmáticotranscendental do princípio moral de universalização a partir dos pressupostos da argumentação, há em comum entre os principais protagonistas do modelo discursivo da ética a referência, ao mesmo tempo positiva e critica, à filosofia de Kant, referindo-se ambos ao giro linguístico da filosofia contemporânea, à luz do qual é promovida uma transformação da filosofia transcendental do sujeito ou da consciência numa filosofia da linguagem ou da intersubjetividade. O núcleo dessa transformação reside na assagem de uma perspectiva concentrada sobre os sujeitos isolados, na qual o poder de autolegislaçào é outorgad o poder de autolegislação é outorgado à simples competência dos individuos, para uma interpretação dialógica do imperativo categórico, na qual predomina a idéia de um entendimento mútuo visado através da comunicação entre falantes e ouvintes.

Dai a formulação habermasiana, em Consciência moral e agir comunicativo (1983), do princípio de universalização (U) como regra de argumentação moral: “toda norma válida deve satisfazer a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais, que (previsivelmente) esultarem para a satisfação dos interesses de cada um dos indlviduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos”. Contudo, a Ética do Discurso também leva em conta o fato de que a margem de cobertura dos conflitos diminui sensivelmente no horizonte da modernidade, em virtude da superação progressiva do contexto religioso e metafisico tradicional marcado por uma fusão entre facticidade e validade. Com o aumento da carga a ser assumida pelos próprios indivíduos para a definição comum das situações, cresce igualmente o risco do dissenso e da boa coordenação das ações.

Eis a razão pela qual Habermas (autor que será privilegiado daqui em diante) examina, de um lado, a gênese dos sub-sistemas do agir racional com respeito a fins que, oriundos do próprio processo de racionalização do mundo vivido, tornam-se autônomos vis-à-vis de seu contexto de origem, e, de outro lado, a pluralização e a diferenciação desse horizonte comum de convicções profundas e não problemáticas que representa o mundo vivido, cu’as certezas iá não são suficie pensar os déficits PAGF 18 são suficientes para compensar os déficits normativos resultantes da ruptura moderna com as visões abrangentes de mundo. Ora, a idéia de desencantamento do mundo, cuja descrição weberiana antes assinalada serve como ponto de partida para a situação de sociedades profanizadas onde as ordens normativas têm que ser mantidas sem garantias meta-sociais, é desenvolvida particularmente com base na evolução do direito e da moral, desde a imbricação entre a ética mágica e o direito revelado das sociedades arcaicas, passando por uma certa distinção entre a ética da lei e o direito tradicional, até a separação entre as éticas da convicção e da responsabilidade e o direito formal das sociedades modernas.

De acordo com Habermas, a oral autônoma e o direito positivo se diferenciam e passam a constituir uma relação de complementaridade recíproca após o desmoronamento da eticidade substancial. Destarte, a Ética do Discurso extrai da ampla e crescente reflexividade das tradições culturais inseridas na modernidade a idéia da estabilização de uma concepção procedimental da razão prática, apoiada num confronto argumentativo desprovido de fundamento absoluto transcendente. No contexto moderno do pluralismo inevitável das formas de vida, uma teoria pós-metaffsica da justiça deve ser fundada numa concepção pragmática da comunicação, isto é, aseada no reconhecimento discursivo de pretensões de validade inerentes a todo ato de fala.

A pretensão introduzida pela teoria discursiva, ainda que mantida a defesa clara e explícita do primado do justo sobre o bem e do conceito universalista a incorporação de universalista de moral, é a da incorporação de motivos críticos bem fundados do conseqüencialismo moderno e do eudaimonismo clássico no âmbito de uma concepção ampla da racionalidade que, ainda na esteira de Kant, permita distinguir as dimensões ética (que diz respeito ao que é bom para mim ou para nós), pragmática (que se refere a meios apropriados ara determinados fins práticos) e moral (que tem a ver com o que é valido para todos, na acepção kantiana de um dever universal) da razão prática. O objetivo principal, ao adotar-se a leitura sugerida, é o da conjugação da liberdade dos antigos com a liberdade dos modernos, isto é, da autonomia pública com a autonomia privada, de modo a assegurar o vínculo interno entre soberania popular e direitos humanos.

A relação interna entre direitos humanos e soberania popular, ou ainda a idéia de que o Estado de direito não é possível sem democracia participativa, é uma intuição central da Ética do Discurso na versão habermaslana, apreendlda com base na releitura de duas interpretações contrárias e conflitantes na filosofia política, representadas pelo liberalismo clássico e pelo republicanismo cívico. Na tradição liberal, que remonta a Locke, a ênfase é posta no caráter impessoal das leis e na proteção das liberdades individuais, de tal modo que o processo democrático é compelido por (e está ao serviço dos) direitos pessoals que garantem a cada indivíduo a liberdade de buscar sua própria realização. Cristalizou- se aqul uma compreensao individualista e instrumentalista do papel dos cidadãos.

A idadania é concebida de acordo com o modelo da pertença ore paz de fundamentar uma o modelo da pertença organizacional capaz de fundamentar uma posição jurídica, ou seja, os indivíduos permanecem exteriores ao Estado, contribuindo de certa maneira para a sua reprodução, através de eleições e pagamento de impostos, a fim de conseguir em troca benefícios organizacionais. Na tradição republicana, que remonta a Rousseau, a primazia é dada ao processo democrático enquanto tal, entendido como uma deliberação coletiva que conduz os cidadãos à procura do entendimento sobre o bem comum. Nesta visão, a liberdade humana tem ua máxima expressão não na busca de preferências privadas e sim na autolegislação mediante a participação politica.

A cidadania é vista através do modelo da pertença a uma comunidade ético-cultural que se determina a si mesma, ou seja, os indivíduos estão integrados na comunidade política como partes num todo, de tal maneira que, para formar sua identidade pessoal e social, eles necessitam do horizonte de tradições comuns e de instituições políticas reconhecidas. Tais divergências não são inteiramente surpreendentes se levarmos em conta o fato de que o pensamento democrático moderno forjou-se em eio a um conflito interno entre duas noções radicalmente distintas de liberdade, exemplarmente comparadas por Benjamin Constant sob os titulos de liberdade dos “modernos” e liberdade dos “antigos”. A tradição liberal atribui maior peso à primeira, sobretudo à liberdade de consciência e de pensamento, ao passo que a tradição republicana dá maior importância à segunda, particularmente às chamadas liberdades políticas iguais. mbas concorrem a assim, ambas concorrem a partir de concepções unilaterais que concebem, por um lado, os direitos humanos como expressão de uma autodeterminação moral, , por outro lado, a soberania popular como expressão de uma auto-realização ética. De acordo com a interpretação liberal, os cidadãos não se distinguem essencialmente das pessoas privadas que fazem valer seus interesses pré-políticos contra o aparelho estatal, e por isso a prioridade recai sobre as liberdades negativas que asseguram o exercício da autonomia individual. Segundo a interpretação republicana, ao contrário, a cidadania se atualiza somente na prática de autodeterminação coletiva, razão pela qual. primado incide sobre a autonomia política dos cidadãos, que constitui um fim em si mesmo e que ninguém pode ealizar perseguindo privadamente interesses próprios, pois pressupõe o caminho comum de uma prática intersubjetiva. O liberalismo e o republicanismo tendem a ressaltar apenas um dos aspectos da autonomia dos Individuos como base da legitimidade democrática. Ao defender uma relação interna entre autonomia privada e autonomia pública, a Ética do Discurso pretende fazer justiça a ambas as tradições, isto é, proporcionar uma justificação do Estado de direito democrático na qual direitos humanos e soberania popular desempenham papéis distintos, irredutíveis, porém complementares. ? de tal justificação que provém o modelo rocedimental da teoria discursiva, uma vez que para demonstrar a tese de uma relação interna entre democracia e estado constitucional é necessário introduzir um princípio de validação imparcial de normas – con anterior à própria imparcial de normas – conceitualmente anterior à própria distinção entre a moral e o direito, segundo a nova arquitetônica defendida por Habermas na obra Direito e Democracia (1992) -, cuja formulação é a seguinte: “São validas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”. Tal princ[pio do discurso (D) permite evitar tanto uma interpretação moralizante do direito quanto seu confinamento em afirmações comunitárias de valores compartilhados, apontando para um modelo de legitimação que solda a cisão liberal-republicana.

Em face do referido problema de integração das sociedades modernas pluralizadas e secularizadas, Habermas adota uma compreensão procedimental da razão prática em cujo cerne está a expectativa da qualidade racional dos resultados obtidos através da ampla e livre discussão entre os participantes de processos argumentativos fundados no pnnc(pio do discurso. Enquanto rincípio de justificação imparcial das normas de ação em geral, o principio do discurso (D) está igualmente na base da moralidade e do direito. Eé graças ? mencionada diferenciação de usos da razão prática que Habermas insiste no delineamento sutil entre tal princípio, que explicita o sentido da imparcialidade de juízos práticos, e sua especificação como princípio moral de universalização (U) ou como princípio da democracia (De), de acordo com o qual “somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, nu rídico de normatização

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