Cartas

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Cartas d’ amor, Eça de Queirós Fonte: QUEIRÓS, Eça de. Cartas D’Amor- O Efêmero Feminino. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. Texto proveniente de: A Biblioteca Vlrtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por: Celia Terezinha Zago Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima s escreva para to view nut*ge Estamos em busca d ajudar a manter este iores informações, tários para nos você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para ou CARTAS D’AMOR Eça de Queirós prmeira Carta a Madame de Jouarre Minha querida madrinha.

Ontem, em casa de Madame de Tressan, quando passei, levando para a ceia Libuska, estava sentada, conversando consigo, por debaixo do atroz retrato da marechala de Mouy, uma mulher loura, de testa alta e clara, que me seduziu logo, talvez por lhe pressentir, apesar de castelo do Anjou com erva nos fossos, porque me não lembro de Ter encontrado em Paris aqueles cabelos fabulosamente louros como o sol de Londres em Dezembro – nem aqueles ombros decaídos, dolentes, angélicos, imitados de uma madona de Mantegna, e inteiramente desusados em França esde o reinado de Carlos X» do “Lírio no Vale” e dos corações incompreendidos.

Não admirei com igual fervor o vestido preto, onde reinavam coisas escandalosamente amarelas. Mas os braços eram perfeitos; e nas pestanas, quando as baixava, parecia pender um romance triste. Deu-me assim a impressão, ao começo, de ser uma elegiaca do tempo de Chateaubriand. Nos olhos porém surpreendi-lhe depois uma faísca de vivacidade senslVel – que a datava do século XVIII. Dirá minha madrinha: “Como pude eu abranger tanto, ao passar, com Libuska ao lado fiscalizando? ‘ É que voltei.

Voltei, e da ombreira da porta eadmirei os ombros de velas por trás, entre as orquídeas, nimbava de ouro; e sobretudo o sutil encanto dos olhos – dos olhos finos e lânguidos.. Olhos finos e lânguidos. É a primeira expressão em que hoje apanho decentemente a realidade. por que é que não me adiantei, e não pedi uma ” apresentação? Nem sei. Talvez o requinte em retardar, que fazia com que La Fontaine, dirigindo-se mesmo para a felicidade, tomasse sempre o caminho mais longo.

Sabe o que dava tanta sedução ao Palácio das Fadas, nos tempos do rei Artur? Não sabe. Resultados de não ler Tennyson… Pois era a imensidade de anos que lev PAGF Artur? Não anos que levava a chegar lá, através de jardins encantados, onde cada recanto de bosque oferecia a emoção inesperada de um flirt, de uma batalha, ou de um banquete… .Com que mórbida propensão acordei hoje para o estilo asiático! ) O fato é que, depois da contemplação junto à ombreira, voltei a cear ao pé da minha radiante tirana.

Mas por entre a banal sandwich de foie-gras, e um copo de Tokay que Voltaire, já velho, se recordava de ter bebido em casa de Madame de Etioles (os vlnhos dos Tressans descendem em linha varonil dos venenos de Brinvilliers), vi, constantemente vi, os olhos finos e lânguidos. Não á senão o homem, entre os animais, para misturar a languidez de um olhar fino a fatias de foie-gras. Não o faria decerto um cão de boa raça. Mas seriamos nós desejados pelo “efêmero feminino” se não fosse esta providencial brutalidade?

Só a porção da matéria que há no homem faz com que as mulheres se resignem à incorrigível porção de ideal, que nele há também – para eterna perturbação do mundo. O que mais prejudicou Petrarca aos olhos de Laura — foram os “Sonetos”. E quando Romeu, já com um pé na escada de seda, se demorava, exalando o seu êxtase em invocações à noite e à Lua – Julieta batia os dedos mpacientes no rebordo do balcão, e pensava: “Ai, que palrador que és, filho dos Montaigus! Este detalhe não vem em Shakespeare – mas é comprovado por toda a Renascença. Não me amaldlçoe por comprovado por toda a Renascença. Não me amaldiçoe por esta sinceridade de meridional céptico, e mande-me dizer que nome tem, na paróqua, a loura castelã do Anjou. A propósito de castelos: cartas de Portugal anunciam-me que o quiosque por mim mandado erguer em Sintra, na minha quintarola, e que lhe destinava como “seu pensadoiro e retiro nas horas de sesta” – abateu. Três mil e oitocentos francos achatados em entulho.

Tudo tende à ruína num país de ruínas. O arquiteto que o construiu é deputado, e escreve no “Jornal da Tarde” estudos melancólicos sobre as Finanças! O meu procurador em Slntra aconselha agora, para reedificar o quiosque, um estimável rapaz, de boa farnllia, que entende de construções e que é empregado na procuradoria Geral da Coroa! Talvez se eu necessitasse um jurisconsulto, me propusessem um trolha. É com estes elementos alegres, que nós procuramos restaurar o nosso império de África!

Servo humilde e devoto. Fradique Primeira Carta a Clara Não, não foi na Exposição dos Aguarelistas, em Março, que eu tive onsigo o meu primeiro encontro, por mandado dos Fados. Foi no inverno, minha adorada amiga, no baile dos Tressans. Foi aí que a vi, conversando com Madame de Jouarre, diante de um console, cujas luzes, entre os molhos de orquídeas, punham nos seus cabelos aquele nimbo de ouro que tão justamente lhe pertence como “rainha de graça entre as mulheres”.

Lembro ainda, bem religiosamente, o seu sorrir cansado, de graça sorrir cansado, o vestido preto com relevos cor de botão de ouro, o leque antigo que tinha fechado no regaço; mas logo tudo em redor me pareceu irreparavelmente enfadonho e feio; e voltei a readmirar, a editar em silêncio a sua beleza, que me prendia pelo esplendor patente e compreensível, e ainda por não sei quê de fino, de espiritual, de dolente e de meigo que brilhava através e vinha da alma.

E tão intensamente me embebi nessa contemplação, que levei comigo a sua imagem, decorada e inteira, sem esquecer um fio dos seus cabelos ou uma ondulação da seda que a cobria, e corri a encerrar-me com ela, alvoroçado, como um artista que nalgum escuro armazém, entre poeira e cacos, descobrisse a obra sublime de um mestre perfeito. E, por que o não confessarei? Essa imagem foi para mim, ao princípio, meramente um quadro, endurado no fundo da minha alma, que eu a cada doce momento olhava – mas para lhe louvar apenas, com crescente surpresa, os encantos diversos de linha e de cor.

Era somente uma rara tela, posta em sacrário, imóvel e muda no seu brilho, sem outra influência mais sobre mim que a de uma forma muito bela que cativa um gosto muito educado. O meu ser continuava livre, atento às curiosidades que até aí o seduziam, aberto aos sentimentos que até aí o solicitavam; – e só quando sentia a fadiga das coisas imperfeitas ou o desejo novo de uma ocupação mais pura, regressava à imagem que em mm guardava, om regressava à imagem que em mim guardava, como um Fra Angélico, no seu claustro, pousando os pincéis ao fim do dia, e ajoelhando ante a Madona a implorar dela repouso e inspiração superior. ouco a pouco, porém, tudo o que não foi esta contemplação, perdeu para mim o valor e encanto. Comecei a viver cada dia mais retirado no fundo da minha alma, perdido na admiração da imagem que lá rebrilhava – até que só essa ocupação me pareceu digna da vida, no mundo todo não reconheci mais que uma aparência inconstante, e fui como um monge na sua cela, alheio às coisas mais reals, de joelhos e irto no seu sonho, que é para ele a única realidade.

Mas não era, minha adorada amiga, um pálido e passivo êxtase diante da sua imagem. Não! Era antes um ansioso e forte estudo dela, com que eu procurava conhecer através da forma e essência, e (pois a Beleza é o esplendor da Verdade) deduzir das perfeições do seu Corpo as superioridades da sua Alma.

E foi assim que lentamente surpreendi o segredo da sua natureza; a sua clara testa que o cabelo descobre, tão clara e lisa, logo me contou a retidão do seu pensar: o seu sorriso, de uma nobreza tão intelectual, facilmente me revelou o seu desdém do mundanal e do efêmero, sua incansável aspiração para um viver de verdade: cada graça de seus movimentos me traiu uma delicadeza do seu gosto: e nos seus olhos diferenciei o que neles tão adoravelmente se confunde, luz de razão, calor que melhor olhos razão, calor que melhor alumia…

Já a certeza de tantas perfeições bastaria a fazer dobrar, numa adoração perpétua, os joelhos mais rebeldes. Mas sucedeu ainda que, ao passo que a compreendia e que a sua Essência se me manifestava, assim visível e quase tangível, uma influência descia dela sobre mim uma influência estranha, diferente de todas as influências humanas, e que me dominava com ranscendente onipotência. Como lhe poderei dizer? Monge, fechado na minha cela, comecei a aspirar ? santidade, para me harmonizar e merecer a convivência com a Santa a que me votara.

Fiz então sobre mim um áspero exame de consciência. Investiguei com inquietação se o meu pensar era condigno da pureza do seu pensar; se no meu gosto não haveria desconcertos que pudessem ferir a disciplina do seu gosto; se a minha idéia da vida era tão alta e séria como aquela que eu pressentira na espiritualidade do seu olhar, do seu sorrir; e se meu coração não se dispersara e enfraquecera de mais para poder palp tar com aralelo vigor junto do seu coração. E tem sido em mim agora um arquejante esforço para subir a uma perfeição idêntica àquela que em si tao submissamente adoro.

De sorte que a minha querida amiga, sem saber, se tornou a minha educadora. E tão dependente fiquei logo desta direção, que já não posso conceber os movimentos do meu ser senão governados por ela e por ela enobrecidos. perfeitamente sei que tudo o que hoje su PAGF 7 ela enobrecidos. Perfeitamente sei que tudo o que hoje surge em mim de algum valor, idéia ou sentimento, é obra dessa educação que a sua alma dá à mlnha, de longe, só com existir e ser ompreendida.

Se hoje me abandonasse a sua influência – devia antes dizer, como um asceta, a sua Graça – todo eu rolaria para uma inferioridade sem remição. Veja pois como se me tornou necessária e preciosa… E considere que, para exercer esta supremacia salvadora, as suas mãos não tiveram de se impor sobre as minhas – bastou que eu a avistasse de longe, numa festa, resplandecendo. Assim um arbusto silvestre floresce à borda de um fosso, porque lá em cima nos remotos céus fulge um grande sol, que não o vê, não o conhece, e magnanimamente o faz crescer, desabrochar, e dar o seu curto aroma…

Por isso o meu amor tinge esse sentimento indescrito e sem nome que a Planta, se tivesse consciência, sentiria pela E considere ainda que, necessitando de si como da luz, nada lhe rogo, nenhum bem imploro de quem tanto pode e é para mim dona de todo bem. Só desejo que me deixe viver sob essa influência, que, emanando do simples brilho das suas perfeições, tão fácil e docemente opera o meu aperfeiçoamento. Só peco esta permissão caridosa. Veja pois quanto me conservo distante e vago, na esbatida humildade de uma adoração que até receia que o seu murmúrio, um murmurio de prece, roce o vestido da imagem ivina…

Mas se a minha querida amiga por acaso, ce PAGF 8 OF murmúrio de prece, roce o vestido da imagem Mas se a minha querida amiga por acaso, certa do meu renunciamento a toda a recompensa terrestre, me permitisse desenrolar junto de si, num dia de solidão, a agitada confidência do meu peito, decerto faria um ato de inefável misericórdia – como outrora a Virgem Maria quando animava os seus adoradores, ermitas e santos, descendo numa nuvem e concedendo-lhes um sorriso fugitivo, ou deixando-lhes cair entre as mãos erguidas uma rosa do paraíso.

Assim, amanhã, vou passar a tarde com Madame de Jouarre. Não há aí a santidade de uma cela ou de uma ermida, mas quase o seu isolamento: e se a minha querida amiga surgisse, em pleno resplendor, e eu recebesse de si, não direi uma rosa, mas um sorriso, ficaria então radiosamente seguro de que este amor, ou este meu sentimento indescrito e sem nome que vai além do amor, encontra ante seus olhos piedade e permissão para esperar. Segunda Carta a Clara Meu amor.

Ainda há poucos instantes (dez instantes, dez minutos, que tanto gastei num desolador desde a nossa Torre de Marfim), eu sentia o rumor do teu coração junto ao meu, sem que nada os separasse senão uma ouca de argila mortal, em ti tão bela, em mim tão rude — e já estou tentando reconfigura ansiosamente, por meio deste papel inerte, esse inefável estar contigo que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema e única vida. ? que , longe da tua presença, cesso de viver, as coisas para mim cessam de ser – e vida. É que , longe da tua presença, cesso de viver, as coisas para mim cessam de ser – e fico como um morto jazendo no meio de um mundo morto, Apenas, pois, me finda esse perfeito e curto momento de vida que me dás, só com pousar junto de mim e murmurar o meu nome – recomeço a aspirar esesperadamente para ti, como uma ressurreição!

Antes de te amar, antes de receber das mãos de meu deus a minha Eva – que era eu, na verdade? Uma sombra flutuando entre sombras. Mas tu vieste, doce adorada, para me fazer sentir a minha realidade, e me permitir que eu bradasse também triunfalmente o meu – “Amo, logo existo! ” E não foi só a minha realidade que me desvendaste – mas ainda a realidade de todo este universo, que me envolvia como um ininteligível e cinzento montão de aparências.

Quando há dias, no terraço de Savran, ao anoitecer, te queixavas que eu contemplasse as estrelas estando tão perto dos eus olhos, e espreitasse o adormecer das colinas junto ao calor dos teus ombros – não sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação era ainda um modo novo de te adorar, porque realmente estava admirando, nas coisas, a beleza inesperada que tu sobre elas derramas por uma emanação que te é própria, e que antes de viver ao teu lado, nunca eu lhes percebera, como se não percebe a vermelhidão das rosas ou o verde tenro das relvas antes de nascer o Sol!

Foste tu, minha bem-amada, que alumiaste o mundo. No teu amor recebi a minha iniciação. Agora entendo, agora sei. E, como o

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