Odisseia
ULISSES AQUILES REPENSANDO A MORTE (ODISSÉIA XI, Teodoro Rennó Assunção RESUMO Breve comentário de um trecho célebre do diálogo entre Ulisses e a psukhé de Aquiles no Hades (Odisséia XI, 478491), a partir da discussão da hipótese de leitura de Karl Rüter que percebeu aí uma inversão dos papéis tradicionais dos dois heróis em tensão: Ulisses deplorando os sofrimentos do seu nóstos «retorno») e exaltando o kléos («glória») de Aquiles, e a psukhé de Aquiles, por sua vez, desprezando o seu kléos imperecivel e valori qualquer forma de vi socialmente mais bai c’ no nóstos.
Palavras-chave: Uliss mo de morto, orig de da Vlda implícita ABSTRACT A brief commentary on a tamous passage of the dialogue between Ulysses and Achilles’ psyche in the Hades (Odyssey XI, 478_491), based on the discussion of the hypothesis of Karl Rüter who noticed there an inversion of the traditional roles of the two heroes in conflict: Ulysses deplores the sufferings of his nostos («regress») and exalts the kleos («glory») of Achilles; Achilles’ psyche, on its turn, disdains his non-perishable kleos and values, having before him the undermost state ofthe dead, any form of life (even the lowest in society), that is: the continuity of life implied in he nostos. deste artigo foi lida no XVI Simposio Nacional de Estudios Clásicos realizado em Buenos Aires de 26 a 29 de setembro de 2000. professor de Língua e Literatura Grega (UFMG). KRITERION, gelo Horizonte, no 107, Jun/2003, p. 100-109 Kriterion 107. 65 100 10/2/2006, 11:23 101 ULISSES E AQUILES REPENSANDO A MORTE Núcleo gnômico que magnetiza forçosamente a atenção moderna contemporânea, este recorte do diálogo entre Ulisses e a psukhé — menos “‘alma” do que “sombra” — de Aquiles no Hades poderia sem dificuldade ter sido invocado por Nietzsche como imagem para refutar a oralmente duvidosa idéia cristá de que a verdadeira vida — liberta a alma do corpo — começa apenas após a morte, assim como o foi por Freud, em um artigo de 1915 (isto é: em plena guerra) intitulado “Nossa relação com a morte”, justamente para mostrar como a princípio a existência post-mortem do defunto não passava de um apêndice, sem substância e valor, da mundana e corpórea vida que experimentamosl . Mas é a tensão entre dois modelos de hero[smo que (que não visa em português nenhuma correspondência rítmica com o hexâmetro dactllico) do núcleo deste célebre diálogo entre Ulisses e a psukhé de Aquiles no
Hades: ” ‘ Ó Aquiles, filho de Peleu, o mais forte dos Aqueus, vim por necessidade de Tirésias, para que algum conselho ele me dê sobre como eu possa chegar à rochosa Ítaca. Pois ainda não cheguei perto da Acaia, nem sobre minha terra pus os pés, e sempre suporto males; mas do que tu, Aquiles, nenhum homem antes (foi) mais bem-aventurado nem (será) a seguir. pois antes, estando vivo, te honrávamos como aos deuses, nós os Argivos, por sua vez agora tens amplo poder sobre os mortos, estando aqui; por isto nao te aflijas por estar morto, Aquiles. ‘ Assim eu disse, e ele, de imediato retrucando, disse para mim: Não me consoles da morte, ilustre Ulisses !
Preferiria, sendo um lavrador, alugar meus serviços a um outro, a um homem sem-lote, que não tem muitos recursos, do que reinar entre todos os mortos já perecidos. ‘ “2 ( XI, 478-491 ) 2 FREUD, Sigmund, “Unser Verhàltnis zum Tode” in “Zeitgemásses uber Krieg und Tod” in Studienausgabe Band IX. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1982, p. 52-53. “Nossa atitude para com a morte” in “Reflexões para os tempos de guerra e morte” in Obras psicológicas completas vol. XIV (trad. T. O. Brito, P. H. Britto e C. M. Oiticica). Rio ago, 1974, p. 333. PAGF Ig W. Allen em HOMERI Opera tomi III-IV: Odyssea. Oxford: Oxford University Press, (first edition) 1908, (fifteenth edition) 1987. O texto grego da Ilíada é o editado por David B. Monro e Thomas W. Allen em HOMERI Opera tomi 1-11: Ilias.
Oxford: Oxford University Press, (first edition) 1 902, (seventeenth edition) 1989. 102 A hipótese de leitura destes versos que servirá de ponto de partida para nosso comentário é de Klaus Rüter3 : Aquiles e Ulisses, neste diálogo, inverteriam suas posições em relação à escolha do kléos, “glória”, ou do nóstos, “retorno”, c que resultaria em um jogo irônico de inversões dos proprios lementos que tipificam — opondo-as — as duas personagens: Aquiles, o herói do kléos e da Ilíada, preferindo a vida ou o nóstos de Ulisses ao seu estado de morto no Hades, e Ulisses, o herói do nóstos e da Odisséia, preferindo a morte e o kléos de Aquiles ao sofrimento inumerável de um retorno que parece não ter fim.
O primeiro pressuposto desta hipótese é a idéia de que os dois termos, em princípio antagônicos, kléos e nóstos condensariam tematicamente não só as duas personagens — também antagônicas — de Aquiles e de Ulisses, mas iOS das estórias contadas PAGFd 1 g traduzir, mas sim na famosa assagem do canto IX da Ilíada (410-416) onde Aquiles diz que sua mae previu duas formas possíveis e excludentes de morte (dikhthad(as kêras) para ele: ou morrer lutando em Tróia e perder o “retorno” (nóstos) mas ganhar a “glória imortal” (kléos áphthiton), ou morrer na terra pátria, tendo retornado à casa (oíkad’híkomi) e vivido ainda muito tempo, mas perder a “nobre glória” (kléos esthlón). Como bem obsewou Anthony T. Edwards4 , a hipótese de uma inversão de posições dificilmente se aplicaria a Ulisses, pois ele jamais é confrontado a uma escolha excludente entre um kléos sem nóstos (isto é: a lória mas morrendo jovem) ou um nóstos sem kléos (isto é: vida longa mas sem glória). De fato, esta incompatibilidade entre “a glória” e “o retorno” diz respeito apenas ao modelo heróico radical (e trágico) de Aquiles — que está longe de ser o único, mesmo na Ilíada.
Personagens como Diomedes e Nestor obtêm sua parte de “glória” (kléos) por sua participação corajosa e eficaz na guerra de Tróia (ainda que o kléos do velho Nestor venha não de altos feitos no combate, mas sobretudo da capacidade, apropriada à sua idade, de estabelecer bons planos e de bem deliberar) e conseguem também retornar sãos e alvos às suas respectivas terras pátrias, como o atesta na Odisséia o discurso de Nestor a Telêmaco, relatando o seu retorno e o de Diomedes (cf. Odisséia ersten Buch und zur Phaiakis, Hypomnemata 19. Gõttingen, 1969, p. 252-253. ver também NAGY, Gregory, The Best of the Achaeans. Baltimore: The Johns Hopkins university press, 1979, p. 3541. E ainda o segundo capítulo “Retour au même: dérive” de PUCCI, Pietro, IJlysse polutropos (trad. J. Routier-pucci). Lille: septentnon, 1996 (édition américane: 1987), p. 181-217. EDWARDS, Anthony T. , Achilles in the Odyssey, Beitrãge zur klassischen Philologie 171 . Kónigstein/Ts. , 1985, p. 51. 103 III, 180-183).
O caso de Ulisses é mais complexo porque, além da parte de “glória” que ele obtém por sua participação decisiva na guerra de Tróia (é ? sua astúcia e não à coragem do então já morto Aquiles que a Odisséia atribui a destruição e o saque desta cidade), a sua “glória” (kléos) na Odisséia inclui como primeiro elemento exatamente as inúmeras provações e sofrmentos que constituem o seu longo e atribulado “retorno” (nóstos), retirando assim a exclusividade do feito guerreiro como critério de atribuição de “glória” e permitindo a proposição d eróico em que a ainda uma última viagem por terra — ocorrerá “longe do mar” (ex halós), “sob uma velhice opulenta” (gérai húpo liparôi), rodeado por “um povo feliz’ (laoí ólbioi). Como bem percebeu Karl Reinhardt, esta morte natural de um Ulisses já velho, opulento e rodeado pelo seu povo então feliz constituirá um contraponto à morte trágica de um Aquiles jovem e que está em terra estrangeira, afastado dos seus familiares e de seu povo. 5 Diferentemente de A. T.
Edwards, pensamos, no entanto, que, no caso de Aquiles, talvez seja possível falar de uma inversão de posições em relação ? Ilíada, ainda que tenhamos que precisar melhor em quais termos. Já um escoliasta se perguntava, ao comentar a resposta de Aquiles a Ulisses no Hades (mais precisamente Od. XI, 489-491): “Como pode o poeta retratar como um tal amante da vida a personagem que prefere viver brevemente mas com uma boa glória Se, logo após a passagem já citada do canto IX da Ilíada (410-416), Aquiles exprime dramaticamente a intenção de retornar no dia seguinte, não acreditamos que por isto ele estivesse fazendo uma opção pelo “retorno” e renunciando à “glória”.
Seria preciso ler, em sentido inverso, esta inversão neste ponto da Ilíada como uma ramatização da sua cólera contra Agamemnon, que denuncia precisamente sua inclinação natural pela “glória imortal” (kléos éphthiton) ainda que com a perda do “retorno”. Se, por outro lado, é verdade que o móvel principal do retorno de Aquiles ao combate é não o kléos mas a vingança de Pátroclo e a obrigação uma vez reconhecida a comunidade guerreira de que ele faz parte — que o liga a seus 6 «terion 107. p65 “Achilleus’ death is also prophesied. The latter’s is as close as Odysseus’ is far removed, the one tragic and heartrendlng, the other among a blessed people.
One is in a oreign country, the other is at home — not in the sea, not a seaman’s death. What a change this is when compared with the Iliad ! A ‘gentle’, natural death, a death in harmony with the gods, is highly praised here. ” (REINHARDT, K. , “The Adventures in the Odissey” — transl. by H. l. Flower — in SHEIN, S. L (org. ), Reading the Odissey: Selected Interpretive Essays. Princeton : Princeton University Press, 1996, p. 114. ) Apud EDWARDS, A. T. , op. Cit. , p. 50. 10/2/2006, 11 104 companheiros de armas ou phíloi, nem por isto Aquiles deixa de fazer uma opção por uma vida breve e uma ronta morte, pois sua mãe lhe nuncia que, impostos pela philótes. ? justamente esta adesão incondicional do Aquiles iliádico ao desejo de vingança ou de glória, sem nenhuma consideração pelo risco de perder a própria existência, o que será usado como modelo de comportamento pelo Sócrates platônico na Apologia de Sócrates7 , incidindo talvez sobre toda uma tradição de leitura da Ilíada segundo a ótica problematicamente trágica de seu principal protagonista. Mas uma mínima apreciação positiva do fato mesmo de estar vivo, ainda que não implique em princípio em uma desistência covarde do afrontamento da própria morte em ombate, pode orientar um comportamento mais flexível que, como o de Ulisses e de outros heróis iliádicos mais “prudentes”, leva em consideração as circunstâncias concretas e particulares da ação guerreira, desaconselhando o confronto quando, por exemplo, um deus torna explicitamente manifesto o seu favorecimento do Inimig08 .
A Odisséia, porém, celebra em seu conjunto um herói cuja capacidade básica é a de evitar — por sua astúcia e flexibilidade, ainda que não covardemente — a própria morte, conservando-se em vida e podendo então dar continuidade às sofridas aventuras que se ornarão matéria do canto épico. 7 8 “Estás em erro, meu amigo, se pensas que um homem, possuidor de algum mérito, deve calcular os riscos de viver ou morrer, em vez de, quando age, considerar apenas se o que faz é justo ou in•usto é obra de um homem de be emerso. A acreditar em seriam desprezíveis aqueles semideuses que morreram em frente de Tróia, entre outros o filho de Tétis para quem o perigo pouco era em comparação com a desonra. ” (PLATÃO, Apologa de Sócrates trad. Manuel O. Pulquério. Lisboa: Edições 70, 1997, p. 33. para o texto grego ver PLATO l, Apology. Cambridge, Massachussetts : Harvard University Press, 1995 — eighteenth edition, p. 104. certo que o argumento subsequente da incognoscibilidade da experiência do estar morto é em si totalmente pertinente — colocando em questão não só a representação homérica do post-mortem, mas também as próprias fabulações platônicas do Fédon mas as conseqüências éticas que dele retira o Sócrates platônico são inteiramente discutlVeis, pois a incerteza quanto à existência de algo após a morte poderia levar precisamente a uma valorização da vida análoga à que resulta de uma representação “pessimista” do morto tal como a do Hades homérico. Estas circunstâncias na Ilíada designam uma rede complexa de relações entre os adversários mortais; uma rede cujas coordenadas são sempre determinadas pelo jogo, obscuro e incognoscível para o herói, das intervenções divinas. Este conjunto se distingue dos processos naturais pelo fato de ser algo mutavel e imprevisível. É nestas circunstâncias que o mortal age e ele não pode ignorá-las. O que a multiplicidade das cenas guerreiras parece pois nos revelar é que (segundo uma linguagem aristotélica) não basta ser corajoso, mas é preciso saber ainda onde, quando e com quem se deve sê-lo. ” (ASSUNÇÃO, Teodoro Rennó, “Nota